Geral

Relatos goianos sobre um Rio Grande de lágrimas

Divulgação
O goianiense Breno Ribeiro, professor e músico, em Porto Alegre, com o Mercado Público da cidade inundado ao fundo

ELDER DIAS

O Rio Grande do Sul é terra de um povo desbravador. Em todo o Brasil, a presença gaú-cha é sentida de forma marcante. Nesse sentido, notadamente no Centro-Oeste, principalmente com atuação forte na agricultura e na pecuária. Cidades inteiras foram praticamente erguidas – ou revividas – por gente que veio dos Pampas para o Cerrado.

Mas também há o inverso: muitos goianos foram instigados a deixar seu Estado para estudar ou trabalhar no Sul do País, um lugar de qualidade de vida acima da média nacional. Nos últimos tempos, no entanto, a região, que é bastante suscetível às mudanças climáticas, está marcada por tragédias ambientais, de seca ou chuva intensa.

As águas incessantes que caem sobre os gaúchos também afetam, essa gente que saiu do centro do País e que agora vive uma espécie de “Mad Max reverso”. O jornal colheu alguns desses depoimentos para dar ideia de como quem saiu de Goiás vê a atual situação de sua nova “casa”.

 

“Pensa em algo que virou de cabeça pra baixo”

Breno Alves Ribeiro

“Você consegue imaginar a Praça Cívica toda inundada?”. Essa é a figura visual mais didática que o músico e professor Breno Alves Ribeiro evoca para fazer um repórter de sua cidade natal entender a dimensão do que viu nos últimos dias em Porto Alegre. Dois registros, um feito por ele mesmo, atestam o que vivenciou. No sábado (4), ele fotografou o Mercado Público da cidade já alagado; depois, viu a mesma paisagem mostrada por um drone. “Foi como ir de ‘copo d’água’ para ‘oceano’ em 24 horas. Surreal.”

Goianiense, Breno foi para o Rio Grande do Sul fazer faculdade na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Na cidade, da região da Lagoa dos Patos, onde morou por oito anos, amigos e ex-colegas experimentam a sensação de se tornarem o novo alvo das águas que flagelam o Estado desde o fim de abril. “Alguns deles já saíram de lá.”

As sensações com o que se passa são estranhas, até com as próprias respostas. “As pessoas que conheço em Goiás, quando me perguntam se estou bem, aproveitam para saber se quem mora por onde a enchente passou já está voltando para casa. Eu respondo: ‘Que casa?!’ Tem cidade com bairros inteiros em que não sobrou casa nenhuma e onde nada vai ser reconstruído, porque não vão construir de novo onde pode alagar de novo.”

O professor interrompe a história para informar que, enquanto conversamos, passa mais um helicóptero sobre a cidade serrana. “Essa é uma das coisas mais agoniantes, quando estava em Porto Alegre era só helicóptero o dia todo. Olhava para a rua, tinha caminhonete dos Bombeiros atravessando com um bote na caçamba. Um desespero”, lembra.

A escola de música onde Breno leciona fica no bairro Menino Deus, na capital, um dos que foram tomados pela cheia absurda do Rio Guaíba. Apesar de morar em uma região que não chegou a ser alcançada pelas águas, próxima ao Parque Redenção, Breno tomou uma atitude de boa parte dos porto-alegrenses e gaúchos em geral: se abrigou provisoriamente em outra cidade. No caso, Carlos Barbosa, na Serra Gaú-cha, onde os proprietários de sua escola têm residência e a infraestrutura está íntegra, prejudicada apenas em alguns acessos. “De certo modo, a gente revive as cenas da pandemia, tendo de pausar o trabalho e se adaptar. Uma solução para as próximas semanas será a mesma do período de isolamento: retomar as aulas no formato online.”

As imagens, porém, são mais impactantes desta vez. “Em locais de Porto Alegre que eram formigueiros de gente, da noite pro dia só se viam barcos e pessoas com água até o peito”, conta o músico. De semelhante com os tempos da Covid-19, também o sentimento conjunto de incerteza, com mais chuva à vista. “Todos com medo do que pode acontecer, até porque já caiu bastante a temperatura e vem o frio por aí.”

 

“10 reais matam a sede de uma família por 1 dia”

Alessandra Celline Ferreira Galvão

Em tese, estava tudo certo para Alessandra sair de Santa Cruz do Sul, pegar o voo para Porto Alegre rumo a Goiânia e passar o Dia das Mães com sua família, que veria pela primeira vez a caçula de 10 meses da empresária. Mas, no meio do caminho, tinha um bloqueio. “Avisaram que estava tudo fechando, até o aeroporto, e que o combustível na estrada estava acabando. Não arriscamos. Foi a sorte. O voo tinha sido cancelado. Graças a Deus não chegamos lá, ficaríamos sem ter como voltar.” Era de sexta para sábado (4) e as horas sem comunicação deixaram seus parentes apreensivos. 

Alessandra Celline Ferreira Galvão e o marido, Sávio Batista de Urzêdo, voltaram para Santa Cruz, mas não apenas para esperar bom tempo. Arregaçaram mangas para ajudar como pudessem pessoas que perderam tudo com a enchente. O casal trabalha no ponto de arrecadação de donativos, perto de casa. Com uma conta aberta e a ajuda de amigos de Goiânia, Mato Grosso e São Paulo, conseguiram R$ 8 mil. “Recebemos transferências de todos os valores. É importante pensar que mesmo ‘só’ 10 reais doados são importantes: isso mata a sede de uma família inteira num dia.”

Pelo Instagram, “apesar de não ser nenhuma influencer”, em seu perfil (@alessandra.galvao), Alessandra consegue mostrar como está a campanha. “A ideia da rede social é tornar mais fácil ajudar. É nossa missão ajudar o próximo. E, para mim, faz mais sentido ajudar o próximo que está mais próximo.” Ela se considera uma pessoa de fé, “cristã, espiritualizada”. “Creio que Deus quis que ficássemos aqui, para essa missão. Meu bairro não foi alagado, mas não tinha como ignorar esse cenário que vimos”, diz. 

Os primeiros dias de enchente foram preocupantes. Com emprego remoto, o marido de Alessandra não podia trabalhar, por conta da instabilidade da rede. Tudo isso era muito pouco perto do estrago que viram em outras partes de Santa Cruz: “Dois bairros muito atingidos, muita casa de madeira, à beira do rio, que ficaram condenadas.”

Na pandemia, Sávio perdeu o emprego presencial que tinha e ela, que também é educadora física formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG), teve de fechar e vender uma academia. Ela já havia visitado uma prima na cidade que viraria seu novo lar e se mudaram para lá em 2021, com a então única filha, hoje com 5 anos. Apaixonou-se por Santa Cruz e suas pessoas. “A qualidade de vida é muito boa. Tanto que, depois de tudo o que vem acontecendo, não passa por nossa cabeça voltar (para Goiânia). Aqui nos deram carinho, fizemos amizades logo. Agora é hora de contribuir”.

“Nascida e criada” no Residencial Sonho Verde, no Conjunto Riviera, sul de Goiânia, para as próximas semanas Alessandra tem esperança de festejar na capital goiana o aniversário de 1 ano da filhinha. “Não sei se vamos conseguir. Mas isso agora não é o mais importante.”

 

“As pessoas estão desistindo de ficar aqui na região”

Roney Pereira de Souza

“Pode ser meio-dia? É que está muito forte a chuva aqui, muito barulho e meio-dia já vou estar em casa e acho que lá vai estar mais tranquilo...”. A conversa com Roney, na manhã desta sexta-feira (10), começou pelo WhatsApp e precisava ser mais dinâmica, daí o pedido da reportagem. Mas a resposta trouxe certo incômodo por algo que ele já havia adiantado em um áudio anterior. “Pessoal fala que aqui é ‘o’ problema. Se chove aqui no Vale do (Rio) Taquari, e está chovendo sem parar desde ontem, toda essa água vai para a região de Porto Alegre.”

Roney Pereira de Souza sabia que 2024 seria um ano de mudanças em sua vida. Só não esperava que fosse tanto e com tamanha intensidade. No ano passado, a empresa em que o bacharel e especialista em logística trabalha decidiu encaminhá-lo para coordenar seu novo centro de distribuição, na pequena Flores da Cunha, distrito emancipado de Caxias do Sul e com pouco mais de 30 mil habitantes.

Aos 33 anos, tinha seu maior desafio: era a primeira vez que Roney Pereira de Souza saía para morar fora de Goiânia, deixando casa no Parque Amazônia e a mãe no Setor Garavelo. Chegou à cidade gaúcha em fevereiro e passou a cuidar da unidade, que recebe, armazena e distribui móveis para concessionárias de veículos.

De sábado para domingo (28) da semana anterior, Roney começou a chover na região. Uma chuva forte e que não parava. Quando deu três dias seguidos assim, eu achei muito estranho, mas ninguém aqui se dava o que estava por vir. “Imagina aquela pancada de chuva de verão que cai aí em Goiânia e deixa estragos com uma hora. Agora pensa nisso, mas durando dias e dias”, relata. E a chuva seguiu nessa mesma intensidade até quinta-feira (2).

O rio já tinha transbordado e o centro de distribuição fica às margens. “Aqui na cidade, ficou alagado até a estação de abastecimento, o que fez com que ficássemos sem água durante vários dias.” O trabalho no momento é tirar a mercadoria do depósito e usar as carretas para o armazenamento do estoque. “Eu precisava ter agora mais uns dez Roneys para me ajudar”, brinca.

Os clientes já estão sabendo que as entregas, obviamente, vão atrasar. “Só tem um acesso para sair de Flores da Cunha, que vai por Vacaria, na divisa com Santa Catarina. Se precisar de desvio, sai caro demais pagar o frete, não compensa”, justifica Roney. Mas o drama não é só de quem compra. Por conta dos bloqueios parciais e totais nas rodovias, os caminhoneiros estão resistentes em voltar a pegar cargas no Rio Grande do Sul. O relato em várias transportadoras é de que os motoristas autônomos que moram na região e saíram de viagem não pensam em voltar tão cedo, mesmo ficando longe da família. “Então, eles buscam novos frete entre as demais regiões, do Sudeste para o Norte, do Norte para o Centro-Oeste, Nordeste, para não parar. O medo de voltar e ficar com o caminhão preso em um bloqueio é maior”, explica.

No geral, a situação na região é de desalento com a sequência de enchentes. “Muita gente das cidades por perto que teve perda material não quer passar mais por isso, preferem deixar para trás e ir para o litoral ou um lugar mais seguro e recomeçar. As pessoas estão desistindo porque entendem que é um problema da região, que não vai ser resolvido.”

E sobre como as pessoas que deixou em Goiânia estão lidando com a situação? “Minha família está muito preocupada, minha mãe me liga todo dia, às vezes até chorando, meus amigos também, já que eu costumo ir uma vez por mês a Goiânia”, diz. “Na TV mostram cidades submersas, cenas chocantes. Só que não é todo lugar que está assim, mas as pessoas ficam com isso na cabeça”, diz.

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Alessandra Galvão, empresária goiana e moradora de Santa Cruz do Sul, voluntária para arrecadação e trabalho de recebimento de donativos e Rubem Quintana, um dos coordenadores do Pavilhão Central, local onde armazenam e distribuem as doações
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