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Como Goiânia quer entrar no mapa das artes com dinheiro do agro, que atrai marchands

Divulgação

GOIÂNIA, GO (FOLHAPRESS) - Ploc. Ploc. Ploc. O barulho das rolhas saltando das garrafas de espumante é constante nos jardins de uma casa de inspiração modernista na região central de Goiânia. Entre uma taça e outra, a alta sociedade local e profissionais do mundo da arte vindos de São Paulo celebram numa noite quente de maio a inauguração da galeria Cerrado.

Aberto para o público na sexta-feira, dia 6, o empreendimento é uma parceria entre as galerias Almeida e Dale, uma das poderosas do mercado paulistano, e Casa Albuquerque, tradicional em Brasília. "São poucos os colecionadores que têm mais obras do que espaço", afirma Lucio Albuquerque, um dos três sócios da Cerrado, ao comentar o potencial de vendas no Centro-Oeste. "A obra de arte é diferente de um móvel, que a cada dez anos você vai trocar --a obra de arte vai ficar na sua casa para o resto da vida."

Fincar no planalto central uma galeria que comercializa obras avaliadas em milhões de reais de Di Cavalcanti, Guignard e Adriana Varejão, por exemplo, é uma aposta quase certeira numa região em expansão econômica movida pelo agronegócio e onde o público com dinheiro gasta com bens de consumo como carros caros e roupas de grife, segundo as conversas que rolavam no coquetel de inauguração.

Mas é também uma ação de fomento ao sistema de arte, entre tantas outras que querem colocar nos próximos anos a capital de Goiás no mapa das artes do Brasil. Na região rural de Goiânia, o pintor Dalton Paula --artista local de expressão internacional, com obras na coleção do Museu de Arte Moderna de Nova York--, está na fase avançada da construção do Sertão Negro, um complexo no meio do verde que começou como sua casa e ateliê mas que agora recebe 20 alunos de vários estados do país para residências artísticas com aulas de gravura, cerâmica e capoeira e almoços comunais à sombra de uma choupana.

Além da construção principal, local onde Paula pinta seus conhecidos retratos de personalidades negras com cabelos tecidos com fios de ouro, três outros chalés para abrigar os residentes estão subindo, todos construídos da forma mais sustentável possível --com tinta natural empregada na pintura das paredes, reservatório de água para reutilização e banheiro seco.

A obra de Paula, assim como o Sertão Negro, que o artista chama de quilombo, são voltados para a cura das cicatrizes do passado colonial, ele diz. Seu posicionamento atrai artistas ocupados com pautas decoloniais, que produzem trabalhos em diversos suportes sobre o racismo, a queda da masculinidade tradicional e a presença feminina em terreiros de religiões de matriz africana, de acordo com relatos dos atuais residentes, a maioria jovens profissionais entre os 20 e os 30 anos de idade.

Há também uma outra residência artística em gestação, na cidade de Goiás, a antiga capital do estado e patrimônio da Unesco, distante duas horas de carro de Goiânia. Juliana Freire, ex-sócia da galeria paulistana Emma Thomas, deve inaugurar nos próximos meses a Casa Tempo, uma casa com fachada art déco e interiores dos séculos 18 e 19 que vai receber artistas para períodos de pesquisa e trabalho e aulas com professores locais.

As iniciativas acontecem num contexto de formação de um mercado de arte no estado, afirma Wanessa Cruz, uma das criadoras da Feira de Arte de Goiás, conhecida como Fargo. "Goiás tem poder financeiro muito alto, mas grande parte das pessoas com dinheiro ainda não se atentou para o poder da arte. Comprar arte não é só para decorar a casa, mas serve como investimento também", diz ela, acrescentando que 99% dos moradores do estado desconhecem os talentos locais.

Cruz conta que os expositores da Fargo, evento que chega no final deste mês à sua quinta edição, mostram sobretudo artistas locais, uma estratégia para se diferenciar das feiras do Sudeste --SP-Arte, ArtRio e ArPa. Afora os conhecidos Dalton Paula e Siron Franco, representados na região pela galeria Cerrado, a ideia da feira é apresentar novos nomes, a exemplo do gravador Augusto César, do desenhista e fotógrafo Carlos Monaretta, da pintora Nancy de Melo e dos muralistas Ebert Calaça e Selon.

Ainda de acordo com ela, a capital de Goiás, uma cidade com 1,5 milhão de habitantes, tem mais escritórios de arte do que galerias, isto é, há firmas que comercializam obras mas que não têm um espaço expositivo. No mais, diz Cruz, estas empresas não necessariamente representam formalmente os artistas, como é praxe em mercados desenvolvidos, mas apenas vendem trabalhos pontualmente.

Embora Goiânia atraia agora os holofotes, a cidade já foi palco, no início da década de 2000, de um salão de arte de projeção nacional que levava o nome do shopping center onde acontecia. Denise Mattar, curadora que participou do júri de uma das edições, lembra que a vantagem do evento era a de possibilitar a descoberta de nomes totalmente desconhecidos e que não passavam por filtro algum para participar do salão, dado que as inscrições eram abertas a todos. Foi assim que ela entrou em contato com a obra da artista Anahy Jorge, professora no curso de artes visuais da Universidade Federal de Goiás.

A galeria Cerrado inaugurou com uma mostra de Siron Franco, nome central da arte brasileira desde a década de 1970 com suas pinturas e instalações que tecem comentários críticos sobre a situação social e política do país. Natural da cidade de Goiás, ele também mostra agora uma grande retrospectiva de todas as fases de seu trabalho como pintor no Museu de Arte Contemporânea de Goiás, o MAC-GO, um projeto de Oscar Niemeyer que, embora seja um museu, não conta com programação regular de exposições.

Esta exposição foi custeada e organizada pela Cerrado, que, segundo Carlos Dale, outro dos sócios, vai apostar em ações não comerciais, como conversas com artistas e curadores e um programa educativo, para formar público para a arte numa cidade carente de espaços culturais. Isto, claro, com vistas à expansão do negócio para outros estados do Centro-Oeste, onde não há galerias que possam ser consideradas concorrentes. "Uma galeria como a nossa mexe em todos os pontos do sistema de arte", ele diz.

O jornalista viajou a convite da galeria Cerrado.

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