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Desenhos criados por inteligência artificial viram febre e levantam discussão sobre arte

Fábio Lima
Carlo Batistella: “Logo de início, o que me impressionou foi o realismo e a qualidade artística das imagens”

Nos últimos dias, o feed das redes sociais ganhou uma cara diferente. As selfies dos amigos ganharam elementos fantásticos e lúdicos, enquanto alguns ganharam até mesmo novos estilos de cabelo. Os cenários dessas fotos não poderiam existir na vida real - e não existem mesmo.

A “mágica” é criada pelo aplicativo de edição de imagens Lensa, que ganhou recentemente um novo recurso que cria avatares ilustrados por intermédio de inteligência artificial.

Para criar as suas selfies ilustradas é bem simples. Basta baixar o aplicativo, selecionar algumas fotos do seu rolo da câmera e deixar a inteligência artificial da plataforma cuidar do resto. Ah! É preciso estar disposto a desembolsar uma quantia em dinheiro para garantir o pacote de avatares únicos e de estilos variados. Para obter 50 avatares, por exemplo, o valor é R$ 22,90.

Os desenhos rapidamente se tornaram um fenômeno entre anônimos e famosos, inundando as redes sociais com as selfies coloridas e “diferentonas”. O artista plástico Carlo Batistella não ficou de fora da nova onda. “Eu conheci o aplicativo por meio de um amigo, fotógrafo, que postou os avatares em seu perfil do Instagram. Logo de início, o que me impressionou foi o realismo e a qualidade artística das imagens”, comenta.

A postagem o convenceu a criar os seus próprios desenhos. “Eu gostei bastante do resultado dos meus avatares, principalmente porque eles me remeteram à infância, ao universo dos desenhos animados, da ficção científica e da fantasia. Achei bacana me ver, em poucos minutos, transformado em um astronauta”, conta. Ele adianta que já tem planos, inclusive, de imprimir os seus com qualidade artística e fazer alguns quadrinhos.

Aplicativos que criam ilustrações e pinturas a partir de um algoritmo de inteligência artificial não são novidade. O próprio Lensa, responsável pelas selfies viralizadas na última semana, existe desde meados de 2016. O que se está acompanhando, no entanto, são os avanços das criações desses desenhos feitos por inteligência artificial - e, junto a esses avanços, vêm também algumas polêmicas e debates em torno.

“Mesmo aplicativos que usam I.A. para transformar nossos rostos em cartoons ou anime, por exemplo, não são novidade. Eu já tinha visto muitas dessas imagens na internet”, observa Carlo. “Porém, a tecnologia do Lensa me chamou bastante atenção e me levou a querer pagar pela experiência. Acredito que essa qualidade visual e a diversidade de imagens que o aplicativo cria sejam o motivo por trás do sucesso repentino e pela trend”, opina.

O publicitário e criador de conteúdo Matheus Cerutti, de 28 anos, confessa que não sentiu vontade de entrar “na onda” nas primeiras 24 horas em que as fotos ilustradas inundaram o seu feed. “Não sou de entrar nessas modinhas tão facilmente, mas o resultado das fotos de um amigo em específico me surpreendeu. Elas beiravam a perfeição”, conta. A vontade de criar os próprios avatares surgiu daí.

Ele atribui o sucesso estrondoso da trend à alta qualidade das imagens criadas e à variedade de cenários, elementos e cores fornecidos pelo aplicativo. “Já tinha visto outras artes criadas por inteligência artificial viralizando, mas nenhuma teve tanto apelo quanto essas. É um fenômeno comparável ao criado pelo TikTok, mesmo que o aplicativo seja pago”, observa.
 

É arte ou não é?

Há cerca de três meses, uma notícia repercutiu mundo afora e acendeu novamente um debate dentro do campo de encontro entre artes e tecnologia. Na edição deste ano da Feira Estadual do Colorado, nos Estados Unidos, o premiado em primeiro lugar foi um trabalho criado por um programa de inteligência artificial chamado Midjourney, que transforma textos em desenhos hiperrealistas. Chamada de "Théâtre d'Opéra Spatial", a obra é assinada por Jason M. Allen, que desde então tem se defendido de acusações de ser um trapaceiro.

Obras geradas por I.A. existem há anos, mas a complexidade dos trabalhos criados por programas e aplicativos mais recentes têm levado o debate a ganhar corpo. Entre as críticas, estaria o próprio futuro dos artistas - afinal, se qualquer um pode "criar" obras de arte, por que continuar a pagar artistas para produzi-las? Outro ponto defendido por uma parcela é que esse tipo de inteligência artificial se baseia em milhões de obras já existentes para criar essas novas, o que seria uma espécie de plágio.

Para Carlo Batistella, mesmo que seja algo gerado por I.A. e não pelas mãos humanas, se trata de um tipo de arte. "Até porque por trás do desenvolvimento dessas tecnologias há o trabalho de artistas gráficos e visuais. A propósito, muita gente não sabe, por exemplo, que o Google Earth foi idealizado e desenvolvido por um estudante de artes visuais, e não por um gênio da tecnologia", observa. "Particularmente, acredito que a tecnologia é uma ferramenta a mais dentro do universo das artes visuais, e não algo que possa substituir ou suplantar a criatividade artística humana. No mais, vejo essa função do Lensa apenas como um brinquedo novo que a gente usa e logo em seguida esquece no fundo da caixa", conclui.

Matheus Cerutti vem refletindo sobre o assunto a partir de discussões que acompanhou nos últimos dias. "Tenho amigos artistas plásticos, artistas visuais e designers. Vi muitos deles criticando o fato de o aplicativo ser pago e, na hora de pagar um artista para criar um desenho exclusivo, as pessoas não querem, não valorizam. Mas vejo que o fenômeno do Lensa se deu justamente nesse sentido: ele transforma as obras em padronização. Tantas pessoas entraram na onda porque assim se encaixam onde todo mundo está", diz.

"É curioso, porque não existe uma resposta pronta para isso, se o que vem sendo feito com esses programas é arte ou não. Walter Benjamin publicou um texto quando a fotografia virou arte em que levou essa questão da reprodução técnica gerada por ela - o que, para ele, esvazia o sentido da arte", comenta o designer e professor da Faculdade de Artes Visuais da UFG, Marcio Alves da Rocha. "O grande ponto que eu observo, aqui, é que a própria noção de arte se modifica através do tempo. O que é considerado arte hoje amanhã pode não ser e vice versa", diz.

Ele destaca que arte tecnológica já há algum tempo tem sido aceita como uma forma legítima de arte. "A exemplo do game art, generative art, as diversas formas de mediaArt, entre outras, que utilizam computadores. Inclusive, com movimentos artísticos que surgiram totalmente e exclusivamente na internet, como a glitch art, e estilos artísticos como o vaporwave. Então, não se pode Negligenciar essas manifestações artísticas", aponta Marcio. "O que se está se colocando em discussão, aqui, é a questão de autoria e, com isso, do esvaziamento da noção da arte", observa.

Essa questão se torna mais complexa ainda com o uso de inteligência artificial, ele aponta. "Afinal, sabemos que quem alimenta os algoritmos da inteligência artificial de forma indireta é a inteligência humana por trás dela. A questão de autoria se torna ainda mais complexa com esses aplicativos, porque eles utilizam várias imagens de outros autores para alimentar sua base de dados e aprender com ela, para que com isso ela possa gerar uma outra arte. Vemos, aqui, essa questão da violação dos direitos autorais dessas obras, assim como a dissolução da noção de autoria", explica. 

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