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Bebês cardiopatas enfrentam fila por cirurgia e consulta em Goiás

Wildes Barbosa
Com uma cardiopatia grave, a pequena S. está com 4 meses e sua cirurgia precisa ser feita até os 6 meses de vida

Com quatro meses de vida, a pequena S., moradora de Goiânia, é uma sobrevivente. Ainda na barriga da mãe foi diagnosticada com uma cardiopatia grave que, desde então, tem tirado o sono de seus pais. A indicação de um procedimento cirúrgico a levou para a fila da regulação do Sistema Único de Saúde (SUS), um processo engessado denunciado pelo POPULAR há oito meses. Hoje, segundo informações da Secretaria de Estado da Saúde (SES), há 44 crianças portadoras de cardiopatias congênitas aguardando cirurgias cardíacas e outras 200 esperam por consulta na especialidade.

Pai de S., o servidor público federal, Renato Cirino, conta que, por indicação médica, a cirurgia em S. precisa ser realizada até os seis meses de vida. “A sensação que eu tenho é que esse prazo vai passar. Estou muito apreensivo porque não há transparência.” A posição da criança na fila era o 17º lugar, agora foi para 21º, ou seja, outros pacientes estão sendo inseridos na fila. A cardiopatia diagnosticada na 17ª semana gestacional, levou à descoberta que S. tem ainda Síndrome de Down. “Isso até ficou em segundo plano diante do grave problema dela”, diz o pai. O mal que acomete S. implica em um bombeamento maior de sangue para o pulmão, a deixando sujeita a doenças do trato respiratório.

Números da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que cerca de 130 milhões de crianças no mundo têm algum tipo de cardiopatia congênita. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, por ano nascem no país 29 mil crianças cardíacas, das quais 23 mil vão precisar de cirurgias. Em média, um em cada cem nascidos é diagnosticado com cardiopatia congênita. São diferentes graus de comprometimento. As alterações são diversas, como a formação errática ou o não desenvolvimento das cavidades do coração, problemas em válvulas, veias e artérias relacionadas ao sistema cardíaco.

São inúmeros os casos que chegam à Associação de Amigos do Coração, sob o comando de Martha Medeiros, uma mãe que vivenciou situação semelhante e passou a ajudar outros pais. “Em Goiás temos apenas dez leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no SUS para atender pacientes que precisam de uma cirurgia cardíaca pediátrica. A fila não anda.” Ela denunciou o mesmo entrave em julho de 2023. Os leitos mencionados por ela estão no Hospital de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol). Na época, o Hospital da Criança, da rede privada, ainda estava credenciado junto ao SUS para realizar os procedimentos, mas por falta de pagamento, desistiu.

“Criaram uma estrutura enorme para acolher crianças, o Hospital da Criança e do Adolescente (Hecad), mas ele conta com apenas uma cardiopata. Essa profissional não consegue atender sozinha ambulatório, consultório, UTI e paciente de emergência. Estamos vivendo um caos”, afirma Martha Medeiros. O Hecad começou a funcionar em janeiro de 2022. Com 116 leitos de enfermaria, 30 de UTI e sete leitos dia, a unidade surgiu para suprir uma demanda da faixa etária até 14 anos, em diversas especialidades. Funcionando 24 horas, chegou a ser um hospital de portas abertas, mas hoje os pacientes precisam ser referenciados a partir da atenção primária.

O Hecad não realiza cirurgias cardíacas. A Nota Informativa 2/2022, da SES, definiu que recém-nascidos cardiopatas com até 28 dias devem ser levados para o Hospital Estadual da Mulher (Hemu); já acima de 28 dias o encaminhamento é para o Hecad. Cardiopediatras das duas unidades definem se o caso é cirúrgico ou não. Em caso positivo, o paciente é regulado para o Hugol, que possui uma equipe de cirurgiões cardíacos pediátricos e dez leitos específicos. E após o procedimento cirúrgico, e sob avaliação médica, o paciente deve retornar ao hospital de origem para terminar o restabelecimento, garantindo a rotatividade do leito e novas cirurgias.

Ao deixar de atender pacientes pelo SUS em dezembro do ano passado, o Hospital da Criança contribuiu para o aumento da fila. O rompimento se deu após atrasos sistemáticos dos repasses de recursos oriundos do governo federal pela Prefeitura de Goiânia. Anualmente, a unidade realizava mais de 200 procedimentos cirúrgicos, aliviando a alta demanda, mas agora só atende pacientes do SUS que chegam ali via ações judiciais, conta que é paga pelos cofres públicos. O estabelecimento apresentou novo processo de credenciamento junto à SES.  

"Judicialização não é o melhor caminho" 

Diretora da Sociedade Goiana de Pediatria, a cardiopediatra Mirna de Souza defende uma reavaliação do fluxo de pacientes entre os hospitais da rede pública estadual definido em 2022. “O Hecad estava começando a funcionar, mas hoje enfrenta uma sobrecarga porque atende pacientes de todo o estado e eles não param de chegar”. Martha Medeiros, da Associação Amigos do Coração, lembra que a única cardiopediatra no Hecad não consegue agilizar o atendimento. Já para Mirna de Souza, o que movimenta todas as outras filas é a resolutividade. “Quanto mais cirurgia, mais vagas haverá nos ambulatórios e a fila vai rodar.”

Mirna, que também coordena o Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hugol, afirma que o problema é complexo e precisa ser debatido pelos gestores municipal e estadual, responsáveis pela regulação dos pacientes, e pelos profissionais que atuam na área. “Já fizemos várias reuniões e a Sociedade Goiana de Pediatria sempre se colocou à disposição. O fluxo definido pela Nota Informativa da SES nunca funcionou porque acham mais interessante manter o paciente num único lugar, o Hugol, mas o caminho é redimensionar o serviço.” 

A diretora da Sociedade Goiana de Pediatria enfatiza que, diante do fluxo estagnado, muitos pais, desesperados, buscam a Justiça. “O que ocorre é que nem sempre o paciente judicializado é o mais grave. Com liminar, ele acaba furando a fila, tomando o lugar de quem precisa de cirurgia com mais urgência. Este não é o melhor caminho, até porque fica mais caro para o poder público que precisa pagar essa conta”, afirma Mirna. Somente esta semana, segundo a Associação Amigos do Coração, quatro famílias buscaram as vias judiciais. 

Foi o que fez L., moradora de Cristalina. Na atenção primária, em sua cidade, foi constatado que ela tinha gravidez de alto risco e por causa disso foi encaminhada para o Hemu, na capital. O bebê nasceu em janeiro último, ficou internado 27 dias, 19 na UTI. Estabilizado, voltou a Cristalina e na consulta de retorno 15 dias depois, a cardiopediatra identificou necessidade cirúrgica. O serviço de regulação solicitou a quatro hospitais que recebessem o bebê, três recusaram alegando não ser o perfil da unidade. O Hecad informou que não receberia pela “ausência de profissional médico especialista”. L. pediu ajuda ao Ministério Público em seu município. A liminar saiu em 48 horas obrigando o SUS a atender a criança ou encaminhar sob sua responsabilidade, para a rede privada. Desde o dia 12, o bebê de L. está dentro da UTI do Hugol e a cirurgia ainda não foi realizada. “Meu medo é ir para casa e ter de brigar de novo na regulação.”

Tempo de espera para consulta com cardiopediatra é de 24 dias 

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia informa que não há fila na capital para consultas com cardiopediatras. No caso de cirurgias cardiopediatras, os pedidos são encaminhados para o Complexo Regulador Estadual. A Secretaria de Estado da Saúde (SES) explica, em nota, que a fila para os procedimentos cirúrgicos “segue normal e atende aos critérios de gravidade e antiguidade (data da inserção do pedido)”. Atualmente, de acordo com a pasta, há 44 crianças aguardando por cirurgia e outras 200, por consulta com cardiopediatra. Segundo a SES, as unidades estaduais que possuem atendimento em cardiopediatria são o Hugol (cirurgia) e Hecad (ambulatorial).

Conforme a SES, a demanda por consulta de cardiologia pediátrica representa 6% das 36.347 consultas ambulatoriais registradas no Hecad nos últimos 12 meses em 18 especialidades. A pasta confirma que o Hecad conta com apenas uma cardiopediatra que atende diariamente e “o tempo médio de espera para consultas é de 24 dias”, sendo os casos mais graves encaminhados  para o Hugol. A SES informa ainda que uma comissão da pasta monitora regularmente os serviços prestados pelas OSs que administram os hospitais públicos. 

Sobre a liberação dos leitos no Hugol, a SES esclarece que a transferência dos pacientes é realizada sempre que Hemu e Hecad têm capacidade para recebê-los, mas lembrou que ambas as unidades atendem pacientes de todos os municípios e de outros estados, fazendo com que a operação esteja rotineiramente acima dessa capacidade. Sobre o novo pedido de credenciamento do Hospital da Criança, a SES explica que, respeitando o princípio da autonomia, ele ainda será encaminhado à SMS de Goiânia, responsável pela gestão dos leitos SUS da unidade.     

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