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Cálculo de dívida com Comdata foi aleatório e feito a toque de caixa

Divulgação
Rodrigo Melo, da Comdata, e o prefeito de Goiânia, Rogério Cruz

Em apenas 18 dias, a Prefeitura de Goiânia e a Companhia de Processamentos de Dados do Município de Goiânia (Comdata), empresa pública em liquidação desde 2011, levantaram uma suposta relação de softwares da companhia que em algum momento nos últimos 30 anos já foram usados pela administração municipal e, mesmo sem saberem quais ainda estavam em uso nem os valores atualizados dos mesmos, calcularam em R$ 8,77 milhões o valor de uma suposta indenização a ser paga pelo Paço Municipal à empresa.

O procedimento, feito a toque de caixa a partir de 9 de maio para quitar uma dívida judicializada de R$ 6,94 milhões da Comdata com a Minascom, de Palmas (TO), foi interrompido em 7 de junho, após uma semana de cobertura pela imprensa sobre o caso. A empresa havia vendido um sistema de rede para a companhia por R$ 1,2 milhão meses antes desta entrar em liquidação. O caso foi parar na Justiça em 2017 e em junho de 2020 a dívida foi reconhecida com trânsito em julgado, sem possibilidade de recurso e sem previsão de pagamento.

Para justificar o repasse à Comdata foram citados diversos valores, entre R$ 7,6 milhões e R$ 14,6 milhões, até se chegar ao de R$ 6,94 milhões sem nenhuma explicação, e também cálculos com base em balancetes da companhia de 1996, de 2010 e de 2022, inclusive com a decisão de se cobrar retroativo há cinco anos uma locação mensal de 1% do suposto valor de parte dos softwares supostamente usados. A Procuradoria Geral do Município (PGM), ao autorizar o pagamento, admitiu que a dívida “não passou pela formalização necessária e não tem instrumento jurídico a lhe dar amparo”.

O processo administrativo prevendo o repasse para a Comdata pela Secretaria Municipal de Inovação, Ciência e Tecnologia (Sictec) foi encaminhado no final do mês para o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (TCM-GO), que abriu investigação sobre o repasse a pedido do Ministério Público de Contas (MPC). O Daqui teve acesso ao documento, com todos os despachos envolvendo o pagamento frustrado.

“A constatação ora levantada sugere que o processo de pagamento representa potencial instrumento de burla à sistemática constitucional de pagamento via precatórios, bem como de interposto benefício injustificado à determinado credor da empresa pública, colocado injustificadamente em posição favorável para o recebimento de seus créditos”, escreveu na petição inicial o procurador de contas José Gustavo Athayde.

Com a repercussão negativa envolvendo tanto o repasse para a Comdata como o pagamento para a Minascom, e a consequente que acabou trazendo a discussão sobre o processo estagnado de liquidação da companhia, o prefeito Rogério Cruz (Republicanos) aproveitou um despacho da Controladoria Geral do Município (CGM), pedido após a imprensa confirmar o empenho do pagamento à Comdata, para suspender o repasse.

Provocada, a CGM pediu uma série de informações sem as quais dizia ser impossível fazer uma análise da situação, entre elas documentos que atestassem o fornecimento dos softwares, detalhes sobre a situação da companhia e sua composição, comprovações de que os valores cobrados estão conforme o mercado e o apontamento das razões fáticas e jurídicas que embasem a indenização e o valor cobrado.

No dia 20 de junho, o prefeito emitiu nota à imprensa dizendo que determinou o arquivamento do processo diante da análise da CGM (que não houve, na verdade), sem mais detalhes. Um despacho interno no dia seguinte, assinado pelo titular da Sictec, Paulo César da Silva, o Paulo da Farmácia, aponta que, na verdade, a suspensão se deu devido à impossibilidade de cumprir alguns dos pedidos do órgão.

A elaboração da suposta dívida da Prefeitura com a Comdata teve início com um pedido feito pela companhia à Sictec no dia 9 de maio. Em um ofício de uma página, o liquidante da Comdata, Rodrigo Melo, pede a relação de todos os softwares de propriedade da companhia “que estão em uso pelo município de Goiânia, bem como sua descrição e especificação”. “Solicitamos também que seja realizada a valoração dos respectivos softwares para fins de contabilização e balanço patrimonial”, escreveu.

Três horas depois do ofício dar abertura a um processo eletrônico dentro do sistema interno da Prefeitura, a Secretaria Geral da Sictec encaminhou um pedido à Diretoria de Sistemas para que “o mais breve possível” fosse entregue o levantamento. A resposta veio em seis dias, com uma lista de 122 softwares e uma ressalva: “não temos como valorar os devidos softwares, bem como indicar se os mesmos ainda estão em utilização”.

Neste momento, foi anexadolevantamento feito por “uma empresa a qual não sabemos o nome” com lançamentos na contabilidade de um balancete da Comdata de 1996. Na noite do mesmo dia 15, a Secretaria Geral encaminhou a relação para análise da advocacia setorial da pasta. Em um despacho do dia 18 de maio, é dito que o balancete de 1996 foi encontrado “consultando os servidores mais antigos”.

A semana em que o levantamento foi entregue foi agitada na Sictec. No dia 16, o prefeito trocou o comando da pasta, tirando o analista de sistema Hemmanoel Feitosa e Silva e colocando no lugar Paulo César, filho do vereador Paulo Henrique Rodrigues Silva, o Paulo Henrique da Farmácia (Agir).

O vereador é membro da Comissão Especial de Investigação (CEI) que apura supostas irregularidades na Companhia Municipal de Urbanização de Goiânia (Comurg) e, apesar de o Paço Municipal negar a relação, outros dois membros da comissão também tiveram parentes ou aliados nomeados para comando de pastas na mesma época.

No Diário Oficial do Município (DOM) foram registradas 10 trocas de cargos na Sictec, entre eles o da secretaria geral e da executiva, a maioria no dia 16 mesmo. Isso não impediu que a elaboração da dívida prosseguisse.

No final da tarde do dia 18, dois despachos – um assinado pelo novo titular da Sictec e outro pelo novo secretário-executivo da pasta, Alessandro Renner de Sousa – dão encaminhamento para a relação de softwares “esperando ter contribuído para a solução dos problemas da Comdata”. Mas com uma nova observação: um dos motivos para não se calcular o valor dos componentes envolvia “inúmeras variantes técnicas e fáticas”.

Esse adendo da Sictec não impediu que o liquidante da Comdata, no mesmo dia, entregasse um despacho requisitando o pagamento de indenização pelo uso de 32 softwares desde 2011. Conforme explica Rodrigo no documento, o número de componentes escolhidos teve como base um balancete da companhia em 2010 com a relação de 101 sistemas, com valores da época mais atualização pela taxa Selic.

No dia 19, Paulo César despachou um ofício certificando que os softwares da companhia estão, sim, “em sua grande maioria” em uso pela Prefeitura, “principalmente os presentes na planilha apresentada nos eventos anteriores”. Ele encaminha então para a Secretaria Municipal de Finanças (Sefin) o processo “para as providências necessárias que o caso requer”, sem questionar o valor apresentado pela companhia, de R$ 14,6 milhões.

No mesmo dia, a advocacia setorial da Sefin informou que a “pretensão formalizada não é nova” e que já foi feita “reiteradas vezes desde 2011”. “Ocorre que, nestes processos, a Procuradoria Especializada de Assuntos Administrativos (Peaa) sempre se manifestou negativamente ao pleito”, informou a Sefin. A Peaa é ligada à PGM e o processo é encaminhado para lá.

Novos valores

A resposta da PGM veio em 25 de maio. Neste intervalo de seis dias, a Sictec fez a solicitação para a Sefin abrir um crédito suplementar de R$ 6,94 milhões “destinados a realizar pagamento pelos softwares desenvolvidos pela Comdata”. Não há explicação sobre o motivo deste valor, já que até então a suposta dívida ainda estava em R$ 14,6 milhões.

Após este despacho da Sictec, a Comdata encaminhou documento à PGM dizendo que a cobrança de R$ 8,77 milhões era pelo uso dos softwares nos últimos 60 meses, já que, segundo a companhia, a dívida entre 2011 e 2018 teria “prescrito”. Em uma tabela, informou que chegou ao valor atribuindo uma taxa de 1% do valor atualizado dos softwares como “locação mensal”.

No parecer da PGM, aparece um outro valor para os softwares da Comdata, cerca de R$ 7,6 milhões que constam como “patrimônio intangível” no balanço patrimonial da companhia no final de 2022. No entendimento da procuradoria, a Prefeitura vem usando deste patrimônio sem qualquer compensação à Comdata. O procurador Marcos Aurélio Egídio da Silva destaca a impossibilidade de a Prefeitura abrir mão dos softwares da Comdata e afirma haver uma obrigação extracontratual do Paço com a companhia.

No mesmo documento, Marcos Aurélio reconhece que a despesa “não passou pela formalização necessária e não tem instrumento jurídico a lhe dar amparo”. “Tal fato demanda o pagamento por indenização e, tratando-se de medida de exceção, este se dá através do reconhecimento de dívida.”

Mudança de rumo

Com a autorização jurídica da PGM, a abertura de um crédito suplementar de R$ 6,94 milhões para a Sictec foi publicado no dia 26 de maio no DOM. Três dias depois, dentro do procedimento interno sobre a dívida, a Comdata envia um ofício informando sobre o acordo com a Minascom com o valor proposto, coincidente com o pedido de crédito feito pela Sictec. Não há mais referência sobre os R$ 8,77 milhões.

No mesmo dia 29, saiu a autorização assinada por Paulo César para o repasse à Comdata. No dia 2, foi publicado no diário oficial o termo de pagamento. Um dia antes, a advocacia setorial da Sictec encaminhou um parecer pedindo, entre outros pontos, que o processo passasse por uma certificação da CGM e que nenhum pagamento ocorra antes desta análise pelo órgão.

Apesar da orientação, um despacho da diretoria administrativa determina que os autos só sejam levados à CGM depois da efetuação do pagamento. Após ofício assinado pelo titular da Sictec, a Comdata chegou a encaminhar os dados da conta bancária e o dinheiro foi reservado no dia 5 de junho para o repasse. Porém, com a repercussão da notícia sobre o pagamento iminente, o prefeito informou ter pedido à CGM que verificasse a legalidade do repasse. No dia 7 de junho, os autos foram encaminhados para análise da controladoria.

A CGM se manifestou após duas semanas, sem a análise, mas com pedidos de informações. O prefeito aproveitou o documento para encerrar o procedimento. A partir de então, não houve novas manifestações da Comdata ou da Prefeitura sobre a suposta dívida pelo uso dos softwares. Em nota sucinta, o Paço Municipal informou que vai aguardar um posicionamento da Justiça para tratar da dívida com a Minascom.

PGM confirmou pagamento à Justiça

Apesar de a Prefeitura de Goiânia ter afirmado em 7 de junho que o repasse de R$ 6,94 milhões para a Comdata não estava confirmado naquela data, um dia antes a Procuradoria Geral do Município (PGM) havia encaminhado para a Justiça uma petição informando que o acordo firmado no dia 4 de maio entre o Paço Municipal e a Minascom estava cancelado e que a administração efetuou o pagamento de uma indenização à companhia no valor da dívida com a empresa tocantinense.

“Sucede que o Município de Goiânia, supervenientemente ao acordo noticiado nos autos, efetuou à Comdata o pagamento de indenização pela utilização dos referidos softwares. Significa que, em momento posterior à transação firmada entre as partes (Prefeitura e Minascom), a Comdata passou a deter ativos suficientes para quitar a dívida requestada nesta demanda”, informou o procurador João Paulo Ávila de Melo em petição protocolada no dia 6.

Neste mesmo dia, a TV Anhanguera havia noticiado que já constava desde o dia 5 no Portal de Transparência a efetivação do pagamento à Comdata. A Prefeitura negou a informação e disse que houve uma atualização automática da situação da despesa no portal após a emissão da ordem de pagamento, mas que não houve transferência para a conta bancária da Comdata.

A companhia chegou a apresentar no Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás (TCM-GO) extrato do período para comprovar que o pagamento não foi efetivado. Tanto a companhia como a Prefeitura tentam convencer o órgão de que como não houve repasse não há motivos para a manutenção do processo aberto no dia 12 de junho.

Novo entendimento

A mudança na postura da Prefeitura, primeiro fazendo o acordo para pagar diretamente a Minascom, depois tentando fazer o repasse para a Comdata quitar a dívida, ocorreu logo após manifestação do juiz Rodrigo de Melo Brustolin, da 2ª Vara Cível, questionando possíveis ilegalidades na entrada da Prefeitura como uma das responsáveis pelo pagamento.

No dia 5 de maio, um dia após a PGM protocolar a proposta de acordo com a Minascom e quatro dias antes da abertura do processo administrativo que quase resultou no pagamento de uma indenização da Sictec à Comdata, o magistrado havia despachado uma série de questionamentos à Prefeitura relativos a procedimentos burocráticos e supostas ilegalidades com a entrada da mesma como interveniente da dívida.

Entre as dúvidas levantadas pelo juiz estava a possibilidade de o processo ser encaminhado para alguma Vara de Fazenda Pública Municipal, visto que agora se tratava de uma dívida municipalizada, a contradição entre a proposta feita pela PGM com manifestações anteriores e recentes, feitas um ano antes pela mesma procuradoria, argumentando juridicamente que o Paço não tinha nenhuma relação com a dívida com a Minascom, se houve autorização do legislativo e que o pagamento não seria inconstitucional por não respeitar uma ordem de repasses envolvendo uma empresa pública em liquidação.

No dia 4 de maio, saiu no Diário Oficial do Município (DOM) a abertura de crédito suplementar de R$ 6,94 milhões para a PGM quitar a dívida com a Minascom. O processo administrativo do Paço que envolve esse repasse foi aberto no dia 3 de maio e encerrado no dia 10 do mesmo mês, conforme consta no sistema eletrônico de informações (SEI) no site da Prefeitura. Já o processo que envolve o pagamento da Sictec à Comdata foi aberto no dia 9 de maio.

A PGM demorou um mês para responder ao juiz, exatamente um dia após o repasse à Comdata ter sido confirmado no Portal de Transparência da Prefeitura. Na petição, informou que com o pagamento à companhia “o Município de Goiânia não mais se afigura como devedor da dívida” e, “de consequência, tornado sem efeito o acordo noticiado nos autos, inexiste interesse de que o ente público municipal integre a lide”. Com isso, ainda segundo a procuradoria, não seria necessário mais responder aos outros questionamentos do magistrado.

A reação do juiz veio no dia 3 de julho, conforme noticiado pelo Daqui, quando em decisão não homologou o acordo sugerido no começo de maio e sugeriu que a Prefeitura de Goiânia poderia estar agindo de má-fé processual ao ficar toda hora mudando seu entendimento jurídico sobre a responsabilidade pela dívida. Na decisão, ele disse que “salta aos olhos o comportamento contraditório”.

Já no TCM-GO, o processo aguarda uma manifestação do Ministério Público de Contas (MPC) e do conselheiro Daniel Goulart. A prefeitura pediu a suspensão dos autos alegando que o pagamento à Comdata não foi efetivado, enquanto o prefeito Rogério Cruz pediu para ser retirado do procedimento por não ter envolvimento com os trâmites relacionados à formulação da suposta dívida.

O prefeito afirma que as atividades no Paço são descentralizadas. “Não resta razoável, portanto, exigir de um prefeito que, nas suas corretas e balizadas atribuições de fiscalizar e supervisionar os atos de seus secretários, adentre no mérito de conhecimentos que exigem conhecimentos específicos, tampouco que ele detenha conhecimento pormenorizado sobre as nuances e conteúdo de cada processo administrativo”, afirmou a PGM no pedido ao tribunal.

Redação
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