Geral

Cobal está com os dias contados em Goiás

Wildes Barbosa/O Popular
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia

Comum nas penitenciárias de Goiás desde a década de 1980, a Cobal deve deixar de existir a partir de 2023, quando forem finalizados os processos licitatórios da Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP) para um novo contrato de fornecimento de alimentos aos detentos e para a aquisição de itens de higiene e limpeza. A Cobal é o nome informal dado à permissão da administração penitenciária para que familiares de pessoas em privação de liberdade possam levar itens extras de alimentação e outros pessoais, como sabonete e shampoo, em razão do não fornecimento dos mesmos pelo Estado.

O fim da Cobal não é um problema jurídico e até mesmo faz com que se cumpra integralmente a Lei de Execução Penal (LEP) que determina ao Estado a obrigação de conceder todos os itens necessários para a vivência das pessoas em privação de liberdade. No entanto, familiares dos detentos têm ficado apreensivos com a situação e até mesmo com medo de que eles possam passar a ter necessidades dentro dos presídios.

Um dos pontos levantados é que a Cobal possibilita uma maior diversidade de alimentos ou mesmo a realização de lanches entre as refeições. Além da ação conceder aos detentos utensílios e produtos para a higiene pessoal e a garantia da dignidade. Há ainda o aspecto psicológico para quem perdeu o direito da liberdade, pois com a realização da Cobal havia um momento a mais de ligação com a família, mesmo que a partir de itens. Era mais uma maneira de lembrar que as pessoas aqui de fora se importam e desejam a reinserção social de quem está preso.

“Cobal é essencial. É uma forma de afeto, de cuidado que os parentes têm com quem está lá”, afirmou a esposa de um detento na última quinta-feira (17) no momento em que deixava itens para ele na Casa de Prisão Provisória (CPP), em Aparecida de Goiânia.

Ela, que preferiu não ser identificada, relata que os presos não gostam da alimentação que tem sido fornecida dentro dos presídios e, então, os alimentos recebidos via Cobal são as opções diferentes de quem está detido. Ainda não há uma decisão oficial de quando a ação vai deixar de existir, já que depende dos resultados dos processos licitatórios, mas já se sabe que em algum momento de 2023 não haverá mais a possibilidade de envio de quaisquer itens para os detidos, além de medicamentos restritos a receitas médicas.

Presidente da Associação dos Familiares e Amigos de Pessoas Privadas de Liberdade em Goiás (AFPL-GO), Patrícia Benchimol, conta que a notícia deixou as pessoas em choque. “Não esperávamos de maneira alguma. São coisas que levamos só de 15 em 15 dias, ainda é pouco e vão tirar”, diz. Para ela, o que é concedido aos detentos não é o suficiente para a sobrevivência com dignidade. A DGAP garante, no entanto, que o novo contrato para o fornecimento da alimentação nos presídios de Goiás conta com um reforço na alimentação, sobretudo com a inclusão de uma quarta refeição.

Custo

Para se ter uma ideia, atualmente cada pessoa em privação de liberdade em Goiás, por dia, se alimenta com o custo de R$ 12,02. A nova licitação tem a previsão de aumentar esse valor em 74%, chegando a custar R$ 20,94. A licitação já está em andamento e em processo de finalização, com a previsão de término ainda neste ano. O contrato com a empresa atual se encerra no final de dezembro próximo e só será prorrogado se o processo em andamento não conseguir ser finalizado por algum questionamento das empresas concorrentes no pleito.

Além disso, há outra licitação, com edital ainda a ser publicado, para a aquisição dos itens de higiene e limpeza. Neste caso, a previsão de custo chega a R$ 4,7 milhões por mês. “Hoje, o fornecimento integral de material de higiene pessoal ocorre apenas nas unidades de alta complexidade e segurança: Núcleo de Custódia (Aparecida de Goiânia); Presídio Estadual de Anápolis; Presídio Estadual de Formosa; Presídio Especial de Planaltina e Presídio Estadual de Águas Lindas”, informa a DGAP, ao reforçar que nestes locais não há a Cobal.

Patrícia afirma, em contrapartida, que a existência de uma quarta refeição diária não diminui a importância da Cobal. “Era para ser junto, não tem isso de substituir. Os privados de liberdade também estão chocados com isso. As visitas estão sendo de 15 em 15 dias, com pouco contato, pouca visita, sem a Cobal. E o pior disso tudo é que vai ter pessoas falando que tem de ser isso mesmo ou pior, que as pessoas que estão lá não merecem nada. Mas são seres humanos e merecem a dignidade, o que queremos é que eles cumpram a pena com dignidade.”

A esposa de um detento ouvida pela reportagem acredita que o fim da Cobal será negativa para o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. “Não vão receber bem. Eles já sabem que tem a possibilidade, mas na CPP acham que não vai deixar de ter, já que eles trabalham lá dentro e precisam se alimentar mais”, diz. Ela reforça que a sua principal preocupação com o fim da Cobal é com a saúde de seu marido. “Ele e todos lá precisam ter uma alimentação digna. Não é barato mandar as coisas, mas é um sacrifício valioso. Pode até ser positivo do ponto de vista financeiro para as famílias, mas não é proveitoso.”

A presidente da AFPL-GO completa que os familiares não gostaram da mudança de regras nas penitenciárias goianas e que a associação deve se juntar com outras entidades para buscar uma maneira de reverter o fim da Cobal. “Vão prejudicar muito as pessoas que estão lá. Estou até emocionada. Meu familiar está lá desde 2015, e saber que ele não vai poder nem comer uma bolacha, um pão de forma, e a gente sendo privado de levar algo que ele goste, é muito ruim. Já não tem energia lá, não entra uma carta, um jornal. O que me entristece é que a sociedade bate palma por ver isso, as pessoas sofrendo”, salienta.

Patrícia explica que tudo o que a pessoa presa recebe é o que o Estado concede ou pela Cobal e a informação é que já não vai ser permitida a entrada de nenhum item. Segundo a DGAP, a escolha se dá “para promover ao apenado a assistência material integral”. “Além do fornecimento da alimentação balanceada e de qualidade, serão entregues aos custodiados materiais integrais de higiene e limpeza. Será a primeira vez, desde que o sistema penitenciário goiano foi criado (1962), que o atendimento à população carcerária será realizado em sua integralidade. São aproximadamente 22 mil apenados no Estado”, considera a administração.

 

Promotor considera Cobal uma aberração

Titular da 25ª Promotoria de Justiça de Goiânia, com atribuição na execução penal, do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), o promotor Fernando Krebs vê “com ótimos olhos” o fim da Cobal nas penitenciárias goianas, como é a intenção da Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP). “A Cobal é uma aberração. É ótimo que o Estado faça a sua obrigação de fornecer tudo o que o preso precisa. Ela só será extinta quando for implantada a quarta refeição, que é uma ceia, e com o acréscimo nas marmitas e com todo o material de higiene e uniforme”, diz. 

Krebs usa como exemplo as unidades prisionais com maior segurança, onde não existe a ação em que permite os familiares levar alguns itens para as pessoas em privação de liberdade. “A Cobal é uma anomalia, não tem isso em nenhum país civilizado e ainda depende de mão de obra dos policiais penais para revistar as sacolas e isso não será necessário mais”, afirma o promotor. Ele conta que convocou uma reunião com diversas entidades para dialogar sobre o assunto, incluindo familiares de presos, mas que não houve comparecimento.
O promotor reafirma que a ação da DGAP é positiva para o sistema carcerário e tem seu apoio, e ainda que continua disposto a dialogar com os familiares para explicar a situação. “O Estado vai fazer tudo, 100%, como determina a legislação”, conta. Sobre a questão psicológica das pessoas em privação de liberdade ao perder mais um modelo de afeto com a família, Krebs entende que isso deve ocorrer com as visitas, que foram retomadas após o período mais crítico da pandemia de Covid-19, quando ficaram suspensas para evitar o contágio.

“Nada substitui a presença física, que é mais importante do que mandar um alimento. Tem as brinquedotecas, para o convívio com os filhos. Estamos trabalhando com ações de saúde nas penitenciárias, o que nunca houve, fornecendo mais vagas de trabalho. A Penitenciária Odenir Guimarães (POG) está sendo reformada com mão de obra dos detentos, com mais vagas para as unidades. É um processo de evolução do sistema”, considera o promotor. Uma das mudanças foi o fim das visitas íntimas, o que já ocorre desde 2020 e não foram retomadas.
Segundo a DGAP, com a conclusão das licitações, “as famílias não poderão mais levar itens de alimentação, higiene ou limpeza aos custodiados”. Sobre as visitas, elas continuarão ocorrendo apenas nas modalidades já divulgadas: presenciais em parlatórios, espaços lúdicos (brinquedoteca) e convívio familiar, além de virtualmente. “Em caso de doença ou dietas especiais, a alimentação diferenciada será permitida somente mediante prescrição médica, mediante análise da possibilidade pelo diretor da Unidade Prisional, e/ou determinação do poder judiciário.”

O principal ponto para estabelecer o fim da Cobal é a segurança das penitenciárias. De acordo com a DGAP, em 2022, em todo sistema prisional, foram apreendidos durante a Cobal 117 celulares, aproximadamente 9 kg de drogas (maconha, cocaína e crack), 1.943 unidades de k4 (uma espécie de droga sintética) e 29 comprimidos de ecstasy. Além disso, em 2020, 213 pessoas foram presas em flagrante por tentarem passar itens proibidos aos custodiados na Cobal. Em 2021, esse número foi de 159 pessoas e neste ano, até então, são 44 detidos pelo ato. A redução se dá, segundo a DGAP, pelo maior rigor na revista, o que inibe os familiares de tentarem a ação.


Dúvida é se o Estado conseguirá conceder alimentação suficiente

Advogado criminalista e conselheiro penitenciário, Gilles Gomes explica que a Cobal sempre foi a única alternativa ao fato do Estado, mesmo com a obrigação, não conceder o suficiente para as pessoas em privação de liberdade viverem com dignidade. “Criou-se essa alternativa para os familiares fornecerem o que o Estado não consegue. Num primeiro momento é positivo, mas se o Estado não cumprir, temos um problema.” Gomes reforça que mesmo em uma situação de fornecimento da melhor comida diária, com as quatro refeições, ainda há momentos em que as pessoas vão ficar sem acesso a nada. “Todo mundo no seu trabalho, quando dá vontade de comer, vai ali e pega algo. Entre o almoço e a janta a gente come algo, e agora não vão ter mais isso. A execução penal só se insere sobre o direito à liberdade, os demais direitos devem ser garantidos.”

Gomes lembra que a Cobal também dá vestimentas aos presos, ou mesmo um cobertor ou toalha. “Em síntese, o Estado passa a fazer o que está na lei, mas a dúvida que fica é se vai ser o suficiente. Quem vai fiscalizar se está sendo entregue? Vai conseguir suprir a demanda da Cobal?”, indaga. Sobre a questão de afastar mais o familiar do custodiado, o conselheiro diz que esse tem sido um movimento nacional com a tese de que o familiar é um vetor de ilicitude entre o mundo intramuros e o exterior. “Eu discordo. O Estado deve buscar um meio de manter esse vínculo, romper isso é contra o princípio da ressocialização.”

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