Por conta do agronegócio forte, estado tende a ter mais ganhos que perdas na briga entre EUA e China; mas governos locais terão de contribuir, dizem analistas
A economia brasileira deve contabilizar perdas e ganhos com os efeitos da guerra de tarifas entre os Estados Unidos (EUA) e China. O saldo entre os possíveis efeitos ainda é positivo para o Brasil, que deve ter um incremento de 0,01% em seu Produto Interno Bruto (PIB), como prevê um estudo do Nemea-Cedeplar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre os impactos no Brasil da guerra tarifária. Já Goiás deve ter um superávit bem maior que outros estados, de quase R$ 800 milhões, por conta de suas características produtivas.
Donald Trump impôs tarifas de 145% sobre todos os produtos chineses destinados aos Estados Unidos e a China tem rebatido praticamente na mesma proporção. Este embate deve beneficiar, principalmente, o Centro-Oeste brasileiro, incluindo Goiás, que tem sua economia muito baseada na agropecuária e exportação de commodities. O estudo da UFMG mostra que os efeitos de elevações de exportações seriam mais limitados a setores como sementes oleaginosas, vestuário, computadores e produtos minerais.
Em Goiás, o Instituto Mauro Borges (IMB) estima um aumento de mais de R$ 7 bilhões só nas exportações de soja, benefícios que ainda dependerão da boa gestão da política internacional. Mas, no País, setores como indústria e serviços podem ter perdas significativas com efeitos na produção industrial e entrada de importações. De acordo com o levantamento, os ganhos no Centro-Oeste praticamente equivalem as perdas estimadas nos estados do Sudeste. Só São Paulo pode perder mais de R$ 4 bilhões em seu PIB.
Vale lembrar que uma tarifação brasileira sobre matérias-primas para a indústria também poderia prejudicar segmentos industriais importantes para o estado, como o farmacêutico e automobilístico. O diretor executivo do IMB, Erik Figueiredo, lembra que o estudo da UFMG considera os efeitos chamados de equilíbrio geral, sendo que alguns serão positivos e outros negativos para o Brasil. "Será preciso ponderar os dois no final e ver o saldo", alerta.
Segundo ele, as produções goianas de soja, carne e milho tendem a se beneficiar mais. Este movimento que beneficia Goiás já havia sido antecipado pelo Instituto, que previu um aumento de R$ 7 bilhões nas exportações goianas de soja.
Figueiredo lembra que o primeiro governo de Trump também teve medidas protecionistas e voltadas contra a China. Como os EUA são importantes exportadores de soja para os chineses, houve retaliação da China, que tornou a soja americana mais cara e direcionou as compras para o Brasil. "Naquela época houve crescimento de 20% nas nossas exportações de soja", lembra.
Agora, pode haver um movimento similar de aumento de demanda para estes produtos, o que é uma janela de oportunidades para Goiás e o Brasil. O diretor do IMB ressalta que, no caso do Brasil, é preciso fazer equilíbrio de prós e contras, com benefícios para a agropecuária e possíveis prejuízos para a indústria nacional, por conta de um aumento da concorrência de produtos chineses. Já Goiás deve se beneficiar mais porque há uma maior demanda por produtos em que as exportações goianas são fortes, como a soja.
Mas ele adverte que há um segundo movimento inverso que precisa ser considerado. A China exporta muitos bens intermediários para os EUA e, com as tarifas muito altas, terá de escoar estes produtos para outros países com consumo em massa, como Índia, Paquistão ou Brasil. "A indústria brasileira pode ter movimento de comprar mais barato, mas muitos destes produtos são produzidos no Brasil e uma concorrência com a indústria chinesa pode não se benéfica", alerta Figueiredo. Ou seja, o Brasil será beneficiado pela exportação de bens primários, mas também tem uma indústria local que pode ser impactada de forma negativa.
Mas há motivo de preocupação para a economia como um todo, pois esse cenário de fechamento com o mundo também deve impactar a inflação americana. "Quando isso acontece, o FED eleva os juros, o que leva dinheiro do mundo todo para os EUA e puxa nosso câmbio para cima, gerando um efeito econômico negativo para todo País", ressalta o diretor do IMB.
Mas ele lembra que o rendimento dos exportadores também explode com a alta do câmbio, o que beneficia Goiás por conta da produção de commodities. "É como se a economia brasileira estivesse cercada de efeitos nacionais positivos e negativos de todos os lados, mas continuasse com mais benefícios que prejuízos, num momento de oportunidade por conta de nossas características produtivas", explica o economista.
Ele prevê que estes movimentos devem ser muito benéficos para Goiás em 2025, mas será preciso identificar bem estas oportunidades e usar a máquina do estado para remover barreiras para a iniciativa privada aproveitar melhor o momento. "Os governos precisam, a nível federal e estadual, ter um diagnóstico certo destas expectativas e adotar medidas específicas para cada setor, criando incentivos para que segmentos beneficiados aproveitem isso da melhor forma, e benefícios para amenizar prejuízos que alguns possam ter", adverte.
Um exemplo é redução de impostos para indústrias que possam sofrer uma maior concorrência com produtos chineses.
Vocação
Ildefonso Camargo Júnior, economista da Valorimex, também acredita que Goiás será mais beneficiado que outros estados por conta de sua vocação agropecuária. "O Brasil inteiro será beneficiado, mas como Goiás tem sua economia mais baseada no agronegócio, terá um impacto mais positivo em seu PIB, como prevê o estudo", ressalta. Ele lembra que indústrias no estado que dependem da importação de matérias-primas, como os setores farmacêutico e automobilístico, podem ser prejudicadas, mas que Goiás também deve ganhar por ser um grande produtor de minérios.
Entre prós e contras, o saldo deve ser positivo para o estado, ou seja, essa guerra deve proporcionar um superávit entre perdas e ganhos, com o salto no PIB. Mas ele concorda que os governos precisam criar planos com foco neste espaço que está sendo aberto, com um plano de desenvolvimento das exportações. "Talvez seja o melhor momento para o Brasil, que precisa estar mais atento, criando uma política desenvolvimentista de exportações, que ofereça condições especiais para estimular as vendas externas", alerta o economista.
Ele lembra que Goiás já conta com o benefício do Comex Produzir, onde o governo goiano abre mão de 65% sobre os 4% de ICMS na venda de produtos para outro estado. "Mas isso pode ser concentrado nos pontos críticos, subindo de 65% para 80% ou 90% para ajudar os segmentos mais prejudicados nos setores comércio e serviços, criando um crédito outorgado provisório, por exemplo", recomenda Camargo.
Na visão dele, Goiás também poderia adotar uma linha própria para exportação e importação através do Goiás Fomento para incentivar e dar melhores condições para aproveitar essa janela de oportunidades. "Se o governador fizer esta política e aumentar o limite de crédito na Goiás Fomento, teremos um aumento de 15% no PIB do estado com certeza", prevê. Outra sugestão é criar, através dos fundos constitucionais, uma política de facilidade em termos de garantias reais.
Impacto maior deve ser sobre produtos que o Brasil domina
Os EUA são o terceiro principal destino dos produtos do agronegócio brasileiro, atrás apenas de China e União Europeia, e em 2024 respondeu por 7,4% da pauta brasileira no setor, atingindo US$ 12,1 bilhões. Os produtos agropecuários respondem por cerca de 30% das exportações brasileiras aos EUA. No caso do Brasil, os bens importados contam com uma alíquota adicional de 10%.
Antes, os produtos do agronegócio brasileiro contavam com alíquotas nominais médias de 3,9% do valor do produto. Com o acréscimo, estas taxas passarão à 13,9%, afetando a competitividade brasileira. Uma nota técnica da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) alerta que, para alguns setores, o mercado americano é de grande importância. É o caso do café verde, principal produto do agro brasileiro destinado aos EUA e dos sucos de laranja.
Segundo a CNA, os produtos mais impactados seriam aqueles em que o Brasil é dominante no mercado americano, como os sucos de laranja e outras frutas, o etanol e o açúcar, que concorrem com a produção interna dos EUA, ou seja, o Brasil é altamente representativo no total das importações. Nestes casos, o Brasil não teria "espaço" para ganhar de um eventual concorrente, sendo o único ou principal país afetado.
É o caso dos sucos de laranja resfriados e congelados, em que o Brasil responde por 90% e 51% das compras americanas, respectivamente; da carne bovina termo processada, com 63%; e do etanol, 75%. Ainda há potencial de perda de mercado com relação a produtos produzidos pelos EUA e fornecidos internamente, mas que necessitam de importações. É o caso da carne bovina: a produção local alcança 12,3 milhões de toneladas, mas o consumo é de 13 milhões de toneladas.
Mas, na visão da CNA, instrumentos de proteção para medidas retaliatórias e barreiras unilaterais, como o PL da Reciprocidade, aprovado pelo Congresso e que seguirá para sanção presidencial, devem ser utilizados apenas após o esgotamento dos canais diplomáticos, para defender os interesses brasileiros.
O economista Aurélio Troncoso, coordenador do Centro de pesquisas Econômicas e Mercadológicas (Cepem) da Unialfa, prevê que essa guerra não vai prejudicar o Brasil. "Se eu não coloco produto nos EUA, coloco na China, Austrália ou Índia. O Brasil tem outros caminhos", diz. Para ele, com uma tarifa de 10%, o Brasil pode agradecer, pois manda pouca coisa para os americanos, principalmente commodities.
"Pra eles, é mais vantagem comprar do Brasil que produzir lá, pelo custo. Por isso, devemos ficar de camarote esperando ver o que vai acontecer e deixar China e EUA se digladiarem, pois os dois perdem com a guerra. Uma tarifa alta sobre a carne, por exemplo, beneficia o consumidor brasileiro porque vai sobrar mais picanha aqui. O presidente Lula tem de achar bom e deixar a briga para os grandes", defende.
Mas o professor acredita que ainda é preciso esperar o que vai acontecer e tudo indica que o Brasil deve levar vantagem, abrindo frentes comerciais com outros países. "A economia vive de expectativas e os números ainda são especulação. Traçaram um cenário na pesquisa da UFMG que pode ou não acontecer desta forma", recomenda.
Para Felipe Jordy, gerente de Inteligência e Estratégia da Biond Agro, empresa especializada em gestão e comercialização de grãos, o Brasil surge como uma alternativa estratégica e urgente para os compradores chineses. Na prática, a disputa impulsionou a valorização dos prêmios de exportação no Brasil, aumentou a demanda por soja brasileira e reacendeu o debate sobre capacidade logística e gestão de risco.
"O Brasil foi chamado a cumprir um papel central. A China retaliou as tarifas dos EUA e intensificou as compras aqui, com destaque para a aquisição de pelo menos 40 navios de soja entre maio e julho", lembra. Mas parte da demanda de curto prazo já foi absorvida, o que significa que a força compradora chinesa pode diminuir nos próximos meses, principalmente se houver recuo na tensão geopolítica ou reposicionamento da oferta global.
Crédito deve ficar mais caro para empresas
Mas os efeitos desta guerra de tarifas deve ir além da compra e venda de produtos. Para o economista Leonardo Rocha, diretor financeiro da AG Antecipa, esse aumento das tarifas e a consequente valorização do dólar também pode atingir diretamente o mercado de crédito brasileiro. Com a elevação dos custos de captação externa, as empresas brasileiras podem enfrentar um encarecimento do financiamento.
"Além disso, se a inflação americana seguir pressionada, o Federal Reserve pode optar por juros ainda mais altos, o que afeta o fluxo global de capitais e pressiona o Banco Central brasileiro a manter uma postura mais conservadora", destaca.
O resultado será um crédito mais caro e escasso, justamente quando a economia precisa de estímulo, apertando o bolso do empreendedor brasileiro. Rocha lembra que investidores globais tendem a buscar segurança em ativos americanos, reduzindo a disponibilidade de recursos para países periféricos.
"Além disso, a volatilidade cambial pode aumentar, pressionando os preços dos insumos importados e afetando diretamente a cadeia produtiva nacional. Empresas com margens mais apertadas, sobretudo no setor industrial, passariam a enfrentar dificuldades para manter competitividade", explica.
Por isso, o tarifaço norte-americano ultrapassa fronteiras e chega ao bolso do consumidor. Mas o economista adverte que também existe cenário otimista para o mercado brasileiro: enquanto países como China e Índia passaram a enfrentar barreiras tarifárias que ultrapassam 60%, o Brasil, Austrália e Reino Unido foram relativamente poupados, com taxas de 10%, o que abre brecha de oportunidade.
Para Rocha, o Brasil tentou sinalizar uma defesa da sua soberania nacional de maneira impulsiva, sem avaliar as consequências de longo prazo, numa ação mais para o público interno do que uma estratégia real de comércio exterior.
Ele lembra, por exemplo, que com a China restringindo a compra de carne de frigoríficos americanos, o Brasil deve estar de olho nesse vácuo. "Em um mundo onde commodities agrícolas e alimentos ditam o humor da inflação, essa demanda chinesa pode aquecer a nossa balança comercial", destaca.
A guerra tarifária também pode ajudar o Brasil a conter a inflação: se exportar deixa de ser tão lucrativo, a oferta de alimentos no mercado interno aumenta e os preços baixam. "O Brasil não pode desperdiçar mais uma chance de virar protagonista. No xadrez da geopolítica econômica, quem vence não é quem grita mais alto, mas quem movimenta as peças com estratégia".