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Esquema de fraude em pneus pode ter persistido por 20 anos em Goiás

Fábio Lima/O Popular

Atualizada às 22h17

O Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) afirma ter indícios de que um grupo liderado pelo empresário Sérgio Carlos Ferreira, de 62 anos, proprietário da Tropical Pneus, que tem atuado de maneira fraudulenta em licitações de diversos municípios de Goiás, Mato Grosso, Bahia e Tocantins há cerca de duas décadas.

As investigações iniciadas há três anos se concentraram em processos de 2010 para cá por causa do risco de muitos dos supostos crimes terem já prescritos. E mesmo assim encontrou suspeitas de R$ 71,6 milhões obtidos de modo fraudulento em contratos com prefeituras de 229 cidades de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Bahia. Há também contratos com uma estatal ligada ao estado. Os valores podem ser maiores, pois há casos em que não foram considerados os aditivos contratuais nem os recursos obtidos em contratos fora de Goiás ou, porventura, com o Governo Federal.

Nesta terça-feira (26), o MP-GO deflagrou a Operação Fator R, que resultou na prisão de Sérgio, dois filhos, um funcionário que atuava como representante das empresas nas licitações, um suposto cúmplice que figurava como sócio em empresas envolvidas nas fraudes e de um contador e de uma advogada que teriam atuado para respaldar na parte burocrática a atuação do grupo nas fraudes.

Também foram cumpridos 36 mandados de busca e apreensão em endereços das empresas investigadas, das residências dos suspeitos, da Prefeitura de Goiânia e de Aparecida de Goiânia, da Companhia Municipal de Urbanização de Goiânia (Comurg) e da Metrobus Transporte Coletivo. O MP-GO destacou que até o momento os órgãos públicos e seus servidores figuram como vítimas das fraudes.

Os investigados, segundo o Centro Integrado de Investigação e Inteligência e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (CIII-CSI/Gaeco), elaboraram um estratagema fraudulento criando empresas em nome de parentes, comparsas e laranjas colocando-as como de pequeno porte ou microempresas, sendo que na verdade eram todas um único grupo empresarial de grande porte.

Assim, a quadrilha conseguia vencer licitações seja fingindo concorrência entre elas ou participando de processos exclusivos para micro ou pequenas empresas em melhores condições, já que eram um grupo maior. As investigações também apontam casos em que se buscou concorrente para negociar previamente valores e burlar o edital.

“Ademais, os investigados criaram inúmeras outras empresas com a finalidade de blindar o patrimônio e ocultar a verdadeira propriedade das pessoas jurídicas. Empresas eram sócias de empresas, que tinham outras empresas como sócias, numa grande teia que leva a um mesmo grupo econômico-familiar”, escreveram os promotores em um documento encaminhado ao Judiciário pedindo a prisão dos suspeitos.

Para comprovar a relação entre as empresas, mesmo as que estão ou estiveram em nome de pessoas fora da família, os promotores mostraram haver empregados de uma empresa trabalhando para outras, confusão administrativa e financeira, um mesmo contador atuando para todas do grupo, sabendo do vínculo entre elas, unidade física com endereços sendo compartilhados, e-mails com o domínio @tropicalpneus e telefones usados pelas empresas pertencentes a uma delas.

Além disso, o MP-GO conseguiu por meio de quebra de sigilo telefônico diálogos entre os suspeitos que explicitam o uso das empresas com o intuito de favorecer o grupo, cientes da relação entre as mesmas.

“O diálogo acima transcrito explicita que as empresas são apenas CNPJs, manipulados no interesse do grupo criminoso, sobretudo para fraudarem licitações (nas quais concorrem como se fossem Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), as leis trabalhistas, tributárias e previdenciárias (os funcionários são registrados em CNPJs específicos para obterem vantagens indevidas)”, informa o Gaeco ao Judiciário em relação a uma das conversas flagradas.

Atualmente, segundo o MP, quem lidera o grupo na parte operacional seria o empresário Clodoaldo José Barbosa, de 48 anos. Ele apareceu como dono de uma das empresas e sócio do filho de Sérgio em outro. Entretanto, o dono da Tropical Pneus, que teria se afastado em razão da pandemia da Covid-19 do dia-a-dia das empresa, mantém a “liderança intelectual”.

O advogado Romero Ferraz Filho, que representa a maioria dos que tiveram a prisão autorizada, informa que ajuizará pedido de liberdade ao Judiciário e impetrará habeas corpus buscando ao Tribunal de Justiça a revogação das prisões preventivas. Em nota, ele sustenta que não há crime no planejamento sucessório, instrumento jurídico que prevê, inclusive, a criação de empresas, que, por sua vez, resguardam questões tributárias dentro dos limites legais e que todos os fatos serão esclarecidos. “Portanto, não há nada que justifique as prisões, as quais se tenta a revogação antes mesmo da audiência de custódia”, afirmou.

 

Contratos com a Comurg totalizam R$ 8,8 milhões

A Tropical Pneus venceu pelo menos três pregões presenciais na Companhia Municipal de Urbanização de Goiânia (Comurg) desde 2015, somando um total de R$ 8,8 milhões ao incluir os aditivos contratuais por serviços de fornecimento de pneus, rodas e prestação de serviço de recapagem, alinhamento e balanceamento para os veículos da companhia. Somando o valor com os de pelo menos outras duas empresas identificadas pelo POPULAR o total chega a R$ 12 milhões.

Levantamento feito pelo POPULAR mostra que em duas das licitações, a de 2017 e a de 2019, é possível identificar entre as empresas concorrentes, uma do filho do proprietário da Tropical, Sérgio Carlos Ferreira Filho, e outra cujo dono já foi representante da Tropical em uma licitação na Metrobus um ano antes e consta como sócio do filho de Sérgio.

Estas duas outras, juntas, a Serra Pneus, de Sérgio Filho e Clodoaldo José Barbosa, e a Pneus Perimetral, de Clodoaldo, conseguiram R$ 3,2 milhões nos mesmos processos licitatórios da Comurg vencidos pela Tropical. Isso porque os pregões eletrônicos dos quais participaram como “concorrentes” da empresa de Sérgio ofertavam uma série de propostas e estas duas ofertaram valores melhores que a Tropical em alguns itens. De acordo com as investigações do MP-GO, isso era feito para iludir a comissão de licitação das prefeituras.

A reportagem identificou licitações vencidas por estas mesmas empresas também em Aparecida de Goiânia e na Metrobus. O Ministério Público afirma que, até o momento, não há suspeita de envolvimento de servidores públicos nas fraudes e que os órgãos onde foram feitas as licitações vencidas pelo grupo figuram como vítimas.

Com a Prefeitura de Aparecida de Goiânia, a Tropical conquistou R$ 7,63 milhões em contratos desde 2014, enquanto a Serra Pneus R$ 3,51 milhões desde 2019 e a Pneus Perimetral R$ 5,81 milhões desde 2013. Entretanto, nestes casos, consultando apenas o site do Executivo municipal e sem acesso aos detalhes da investigação do MP-GO não foi possível identificar possíveis irregularidades nos contratos.

Já na Metrobus, as três empresas faturaram em contratos de 2016 para cá cerca de R$ 5,1 milhões sem considerar possíveis aditivos aos contratos. Dos sites pesquisados, o da estatal é o pior por não ser possível identificar se os contratos foram aditivados nem detalhes dos pregões vencidos por estas empresas.

A Comurg, a Metrobus e as prefeituras de Goiânia e de Aparecida se manifestaram lembrando que não estão sendo investigadas nesta operação e estão colaborando com o MP-GO.


Apuração começou por meio de uma busca ativa

A investigação que identificou o modelo de fraude para criação de pequenas empresas para participar de licitações, principalmente no interior, foi iniciada com busca ativa dos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado em portais da transparência. O coordenador da investigação que culminou na Operação Fator R, nesta terça-feira (26), promotor Sandro Henrique Silva Halfeld Barros detalha que a análise foi iniciada de maneira aleatória, por amostragem. 

O promotor informa que foi verificado que uma empresa competia com outra e que as duas tinham endereço uma do lado da outra. Na verificação inicial, que é feita em sites de georreferenciamento, perceberam que ficavam, na verdade, no mesmo endereço. Depois perceberam que as empresas já haviam ganhado outras licitações. “Começou no âmbito interno do Gaeco, daí a importância dos portais de transparência.”

O coordenador do Centro Integrado de Investigação e Inteligência e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (CIII-CSI/Gaeco) do MP-GO, Rodney da Silva acrescenta que o MP-GO tem atividade de inteligência que, de forma recorrente, faz trabalho prospectivo para identificar essas falhas e inconsistências em fontes abertas. Da mesma maneira recebemos denúncias. “O Gaeco vai criar um e-mail específico para denúncias para que as pessoas possam encaminhar questões envolvendo investigações criminosas.”


Dados financeiros eram manipulados

Fator R é o cálculo utilizado para determinar a faixa de tributação de uma empresa optante do Simples Nacional. A operação recebeu este nome justamente porque os envolvidos no esquema se organizavam para que as empresas menores não ultrapassassem as regras jurídicas e contábeis para que se mantivessem dentro das regras para poderem participar dos processos licitatórios com as vantagens de serem grandes empresas, como comprar em grandes quantidades por preços menores, mas como se fossem micro ou pequenas empresas.

Coordenador desta investigação, promotor Sandro Henrique Silva Halfeld Barros explica que um dos objetivos da Constituição Federal é reduzir as desigualdades sociais e que um dos mecanismos é o estatuto da micro e pequena empresa. “A lei do simples dá ao pequeno e micro empresário a possibilidade de concorrer no mercado com o grande empresário. Isso é um fator de desconcentração da riqueza porque você dá uma parcela do mercado, uma possibilidade para o pequeno e micro empresário.”

O promotor acrescenta que são vantagens nas áreas trabalhista, tributária e previdenciárias, mas o que é levado em conta na apuração são as vantagens competitivas em licitações. “Para distribuir a riqueza existe a possibilidade de licitações exclusivas para micro e pequenas empresas, para que, nas cidades do interior, o pequeno empresário do município também possa vender e prestar serviço para o município. E a nossa investigação começa quando a gente identifica que uma grande empresa que aparentemente cria pequenas empresas que não são verdadeiramente pequenas empresas para faturar e alcançar a fatia do mercado que deveria pertencer ao micro e ao pequeno empresário.”

O coordenador da investigação detalha que a grande empresa, então, criou as falsas pequenas empresas para ganhar as licitações. Ele completa que foi possível identificar, durante a investigação, que foi criada estrutura para atuar na fraude, já que o grupo possui divisão clara de tarefas. “É complexo vencer tantas licitações em tantos municípios. Todo o arcabouço nos deu o cenário de possível organização criminosa do tipo empresarial.”

Estrutura
A investigação mostrou que a estrutura do grupo mantém uma pessoa considerada líder, e esta tem uma pessoa como braço direito, responsável por administrar efetivamente as empresas e existem pessoas que deram os nomes para criação de empresas de fachada. Ainda existe o núcleo contábil e jurídico. O promotor explica que as empresas menores precisavam de contadores experientes para não permitir que os faturamentos ultrapassassem os R$ 4,8 milhões de receita bruta previsto na regra do Simples.

A outra parte da organização possui um grupo de pessoas que eram responsáveis por organizar quais das empresas criadas concorreriam em quais licitações. Também eram responsáveis pela logística e organização de documentação. Até o momento, o promotor explica que as prefeituras são apontadas como vítimas do esquema, mas isso não significa que elas não possam entrar para a lista de investigados no futuro. 

O coordenador do CIII-CSI/Gaeco, Rodney da Silva diz que por conta da complexidade da investigação, o que se faz, tecnicamente, é um fatiamento das fases da investigação. “A gente vai progredindo. Foi identificada a falsidade e o esquema, agora parte-se para conhecer se houve participação de agente público, por enquanto não dá para afirmar.” 

Os promotores informaram que todas as sete prisões foram cumpridas. Sandro Barros destacou que o objetivo da prisão é parar a atuação, já que fazem parte de uma empresa que está em atividade. “A prisão é para tentar desmantelar esse esquema”, comentou. Ele ainda ressaltou que empresas grandes ou pequenas podem participar de licitações. O que não pode ocorrer é uma empresa se valer de informações falsas, fraudadas, para abocanhar um mercado que não é dele. 

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