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Homem que ateou fogo acidentalmente em viaduto foi abordado 14 vezes pela PM, mas não pela saúde

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Baltazar David é conduzido para delegacia após prisão em flagrante

O pintor e catador de materiais recicláveis Baltazar Campos David, o Patinha, de 41 anos, dependente químico, que ateou fogo acidentalmente no viaduto da Avenida T-63, no Setor Bueno, na madrugada de sexta-feira (15), não tem seu nome no sistema de serviços públicos de abordagens a pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade. Entretanto, seu nome aparece no sistema on-line do Poder Judiciário 17 vezes, sendo que 14 delas por abordagens feitas pela Polícia Militar nos últimos dois anos – sempre por uso de drogas em vias públicas.

Baltazar tem dois filhos, um de 19 anos e outro de 20, mas vive sozinho em um cômodo construído no lote onde está a casa da mãe e diz receber 50 reais por dia trabalhando como pintor ocasional e catando material reciclável na rua. Pessoas conhecidas dele dizem que ficou internado uma única vez na vida para tratar do vício, no começo da década passada, mas fugiu após duas semanas. Depois, tanto ele como a família teriam se resignado com a falta de esperança em um tratamento.

A maioria das abordagens policiais ao pintor foi em 2021, sendo oito entre os meses de maio e julho. E o registro é igual: uma dupla de policiais em patrulha numa região da cidade afirma suspeitar de alguma atitude de Baltazar, o aborda e encontra com ele uma única pedra de crack para consumo próprio (teve uma vez que ele estava com um cigarro de maconha). É lavrado um termo circunstanciado de ocorrência (TCO), ele é liberado e o processo acaba sendo arquivado na Justiça. Dos processos que constam de janeiro de 2021 para cá, dez já foram para o arquivo.

Em seu depoimento, após a prisão pelo incêndio acidental, Baltazar diz que foi para baixo do viaduto, na Praça Simão Carneiro, perto da trincheira da Avenida 85, de madrugada, para fumar a pedra de crack que havia conseguido mais cedo. Ele deixou cair em um vão entre placas de alumínio composto colocadas esteticamente entre as colunas que dão sustentação à estrutura e acendeu um isqueiro em um pedaço de papelão para tentar achar a pedra. Só que o material em chamas também caiu no mesmo buraco, e o incêndio começou.

Em busca da pedra

Quando foi preso, no começo da tarde do mesmo dia, o pintor estava em casa prestes a fumar uma nova pedra. Mais cedo, por volta de 12h30, ou seja menos de 12 horas após o incêndio ter começado, ele havia ido até a Praça da Feira, localizada atrás do mercado municipal do Setor Pedro Ludovico, e pedido a uma amiga que conseguisse uma pedra. Os dois foram até um ponto de venda ali perto e compraram uma por 30 reais. Assim que chegaram na casa, a 230 metros do viaduto, para fumar a pedra, a Polícia Civil chegou e o prendeu.

Baltazar não resistiu à prisão e foi levado para a Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic). Em um vídeo compartilhado pela Polícia Civil, ele aparece saindo da viatura algemado dizendo que não teve intenção de atear fogo na estrutura, que foi um acidente porque queria pegar a pedra que havia caído no buraco.

As passagens pelo sistema judiciário por causa das abordagens da PM foram usadas como um dos argumentos da Polícia Civil para transformar a prisão em flagrante em preventiva. Baltazar chegou a ficar preso após condenação por um roubo cometido no começo dos anos 2000, quando também estava iniciando no uso do crack, segundo pessoas conhecidas dele ouvidas pela reportagem.

Em alguns dos processos após o TCO por flagrante do uso de crack, o MP-GO comentou que o Estado deveria, em vez das abordagens policiais, “oportunizar formas para o dependente químico superar o vício”.

Primeira vez no sistema

A primeira vez que o nome de Baltazar ficou registrado na Justiça foi em agosto de 2002, com 21 anos, por posse de entorpecente para consumo próprio. Já os processos envolvendo algum tipo de violência são um por roubo, dois por tentativa de roubo e um por ameaça a um familiar.

Em setembro de 2003, ele foi detido por roubo a mão armada, crime pelo qual foi condenado em dezembro do mesmo ano. Em 2004 e em 2008, consta que ele tentou roubar duas farmácias, uma em cada ano, mas ambos processos foram arquivados. Em 2015, ele chegou a ser fichado por ameaça, mas o caso não foi adiante.

Há também um processo arquivado por desacato após resistir a uma abordagem e ofender policiais embaixo do mesmo viaduto onde ocorreu o incêndio. Na ocasião, o Ministério Público argumentou que a abordagem foi irregular, pois não havia motivos para Baltazar ser ordenado a colocar as mãos na cabeça e se deixar ser revistado e a Justiça acatou o argumento.

Os demais processos são todos por abordagens policiais nas quais foi flagrado com uma pedra de crack para consumo. Considerando apenas os casos que resultaram em TCO que chegou na Justiça, Baltazar já foi abordado pela PM no Setor Bela Vista, no Parque Vaca Brava, no Setor Coimbra, no Parque Amazonas, no Setor Oeste e no Jardim Goiás. A última vez antes do incêndio foi no dia 6 de julho deste ano, às 15 horas, na Avenida Circular, no Setor Pedro Ludovico – perto de onde comprou droga com a amiga.

Agora, Baltazar está respondendo pelo crime de incêndio causado, com o agravante de ter sido em um bem público.

População vulnerável

O gerente do Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (SEDHS), Marcos Prado, diz que o nome de Baltazar não aparece no sistema de registros de atendimento do programa municipal, mas destaca que pessoas em situação de vulnerabilidade com passagem pela polícia acabam dando nomes falsos quando abordadas pelos servidores da pasta por medo de serem identificadas. Mesmo quando não estão sendo procuradas ou quando a passagem é por uso de drogas.

O porte de droga foi despenalizado pela lei federal 11.343/2006, mas continua tendo natureza jurídica de crime no artigo 28 da mesma lei.

Em nota, a SEDHS afirma que “as equipes responsáveis pelo acolhimento de pessoas em situação de rua fazem ronda diariamente, durante 24 horas, por todos os setores de Goiânia em que há concentração desta população; inclusive, nos viadutos da capital”.

O trabalho da Prefeitura é de acolhimento e oferta de serviços e não pode obrigar um cidadão a sair da situação de rua ou forçá-lo a buscar atendimento contra a dependência química, se for usuário.

Pessoas conhecidas de Baltazar contam que ele nunca foi uma pessoa violenta e sempre “fugiu de encrenca”, principalmente após a condenação por roubo. Eles reclamam da falta de informações sobre o que fazer em casos no qual o dependente químico não procura tratamento por não acreditar no sucesso do mesmo.

“É desesperador, porque a gente tem medo que acabe acontecendo algo com ele. Desta vez foi um acidente que ele escapou com vida”, disse alguém que conhece o acusado e pediu para não ser identificada. “A droga tá aí em toda volta, ele compra perto de casa, o povo leva pra ele. E ele vai pra rua correndo risco.”

Juíza foi contra decisão de soltura

Baltazar conseguiu a liberdade provisória com obrigação de uso de tornozeleira eletrônica em audiência no sábado (16), mas só seria solto no fim da tarde desta segunda-feira (18) por falta do equipamento. No domingo (17), a Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP) encaminhou um despacho informando que não havia naquele momento disponibilidade de tornozeleira “e nem margem para instalação”. “Pedimos vossa compreensão, e assim que houver possibilidade, atenderemos o presente pleito”, informou no documento. 

A soltura foi possível porque o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) se posicionou neste sentido, desde que a liberdade fosse monitorada. Em sua decisão, a juíza Patrícia Machado Carrijo lamentou não ter a possibilidade de decretar a prisão por ofício, pois enxergava a necessidade de repressão maior e, assim como a Polícia Civil, cita o número de passagens de Baltazar pela Justiça.

“Aqui não poderia deixar de tecer critica à alteração legislativa promovida pela Lei 13.964/2019, que tolheu do juiz a possibilidade da prisão preventiva de ofício, autoridade neutra e apta a condenar, mas não a prender? Tempos sombrios… em que caso haja com seu convencimento e decrete a prisão, possa ser a autoridade coautora, a responder nos termos da Lei de abuso de autoridade. Lamentável!”, escreveu a juíza.

Além da tornozeleira, Baltazar não pode sair de casa entre 20 horas e 6 horas e deve se apresentar na Justiça todo dia 10 de cada mês.

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