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Inquérito mostra clima de terror vivido por Marcela Luise

Reprodução / Redes Sociais
Igor Porto e Marcela Luise: relação abusiva e violenta desde o início

As investigações da Polícia Civil de Goiás a respeito da morte da dona de casa Marcela Luise de Souza Ferreira, de 31 anos, mostram que desde o início a relação de nove anos com o marido, o fisiculturista e nutricionista Igor Porto Galvão, de 31, foi marcada por ofensas, agressões e ações intimidatórias e de isolamento familiar. Inquérito que o jornal teve acesso com exclusividade aponta uma série de fatos e testemunhos de situações de medo e humilhações que a mulher vivia antes de dar entrada no Hospital Santa Mônica, em Aparecida de Goiânia, com ferimentos no corpo que, segundo perícia, eram da mesma gravidade de como se ela tivesse sofrido um acidente de carro. Para a polícia, ela foi espancada pelo marido.

Igor foi indiciado na última sexta-feira (24) por feminicídio após a mulher ter ficado dez dias internada em estado grave com diversos ferimentos pelo corpo, principalmente lesões cerebrais. Ao hospital e a parentes e vizinhos, ele contou que Marcela se acidentou em casa, mas para a polícia não há dúvidas de que ela morreu após ter sido agredida violentamente pelo fisiculturista. As mesmas pessoas que ouviram de Igor sua versão para os ferimentos também não acreditaram nele e relataram na delegacia uma série de fatos que colocam Marcela como vítima de uma relação abusiva e extremamente agressiva tanto física como psicologicamente.

A delegada Bruna Coelho, da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) de Aparecida de Goiânia, responsável pelas investigações, disse na sexta, ao tratar do indiciamento de Igor, que os ferimentos são compatíveis aos causados em um acidente automobilístico. Não era apenas uma opinião. A informação consta em relatório técnico dos peritos do Instituto Médico Legal (IML). O documento mostra que as lesões foram causadas por impactos de “alta energia”, “comuns em acidentes automobilísticos com desaceleração ou que resultam em impacto direto” e que para terem sido causadas por uma queda da própria altura, a vítima teria de ser idosa ou sofrer de osteoporose.

“A presença de lesões contusas em diversos lugares do corpo da vítima, de aparência recente, incluindo as fraturas de costela e clavícula à esquerda, faz-nos sugerir que foram advindas de uma força externa aplicada diretamente contra as áreas lesadas, não podendo ser descartada a hipótese de agressão física, se houver grande desproporção de forças entre vítima e agressor, ou envolver queda de altura por empurrão, uso de instrumento de ação contundente ou quaisquer outros meios capazes de provocar traumas de alta energia”, informa o laudo do IML.

São vários os ferimentos descritos, sendo os mais graves na cabeça, com lesões tanto no crânio como no cérebro, além de fraturas em oito costelas e na clavícula. Também foram listados arranhões no pescoço, cortes na boca, olho direito muito inchado e roxo, hematoma no olho esquerdo, hematoma na perna e no braço direito, várias escoriações nas costas e na axila direita, escoriações no pé esquerdo e tufos de cabelo caindo pela raiz. O laudo aponta situações que se assemelham a espancamentos e esganadura. Também diz que as convulsões que ela teve no hospital indicam que houve uma demora até ela ser levada para a unidade.

Medo

Há vários relatos que demonstram o medo que Marcela tinha do marido. Um dia ela ligou desesperada para um familiar pedindo dinheiro emprestado para comprar um aparelho de televisão que a filha teria quebrado acidentalmente. Ela queria comprar a TV antes que o marido chegasse do trabalho, para que ele não se irritasse. Esse parente contou na delegacia que ao questionar Marcela sobre qual o problema de Igor saber do acidente ou deixar para comprar depois o aparelho ela foi se desesperando na voz negando esta possibilidade. Precisava fazer a troca antes do marido chegar e descobrir do acidente.

A própria Marcela, em um depoimento dado na Polícia Civil do DF contra Igor em dezembro de 2020, afirmou que era agredida verbalmente e fisicamente desde o início do relacionamento, em 2014. O casal morava em Brasília, a família da dona de casa é de lá, mas se mudaram para Aparecida de Goiânia no dia 21 de janeiro de 2021. Um dia depois, a dona de casa retirou a queixa que fizera e na qual reconhecia a relação abusiva que era vítima.

Na ocasião, ele a tinha agredido com socos no rosto dentro do carro por não ter gostado da forma como ela se manifestou sobre algo e dias depois por culpá-la pela filha do casal, na época com dois anos, ter tocado em um anabolizante dele. Neste mesmo dia, o fisiculturista quebrou o celular da mulher ao vê-la ligando para a mãe para falar sobre as agressões.

Cópias de uma conversa de Marcela com uma pessoa por aplicativo de celular mostram ela dizendo que a avó e a mãe dela temiam, isso em agosto de 2020, que algo de muito grave pudesse acontecer com Marcela por causa da forma como Igor a tratava e em uma sequência de mensagens ela diz que: tinha medo de ele a matar, medo de ele tirar a filha dela, que gostava muito dele, mas tinha medo, e que sofria muito na mão dele. “Tô bem cansada dessa situação. Isso tá me matando tanto que você não tem ideia. Porque guardo tudo para mim. Muita pressão para cima de uma pessoa só.”

Vista como uma pessoa muito reservada, muito educada e gentil, Marcela só era vista saindo de casa para deixar a filha brincar com outras crianças da vizinhança. Sempre que a conversa com algum vizinho entrava no relacionamento dela, ela se calava ou mudava de assunto. Era comum ela ficar dias sem ser vista por ninguém ou com marcas nos braços.

Em março de 2024, Marcela ficou alguns dias trancada em casa e ao aparecer em público foi vista com o olho esquerdo roxo. Para os vizinhos, contou que o marido foi tirar uma mala do armário e, sem querer, a acertou com o cotovelo. Entretanto, situações assim eram comuns, tanto os “sumiços” como os machucados e vizinhos contam que Marcela nunca convidava ninguém para a casa, nem as outras crianças para brincar com a filha do casal.

Em depoimento na delegacia, testemunhas também contaram que Marcela sempre foi ativa nas redes sociais, mas desde que fez uma cirurgia para implante de prótese nos seios encerrou a conta que tinha no Instagram. Também contam que era comum Igor presentear a esposa com objetos caros, mas que não a permitia ter nem sequer dinheiro próprio. No feriado de 1º de maio, ao levar a filha para um evento que teria de pagar com PIX, a dona de casa comentou não ter conta bancária.

Amantes

Testemunhas contaram que Igor tinha diversas relações extraconjugais e chegou a ter uma amante fixa e que ele falava disso abertamente com terceiros na frente da esposa, constrangendo ela e quem ouvia. A polícia chegou a ouvir uma amante do nutricionista, que disse ter sido apresentada à Marcela como namorada e que se afastou dele por também ser agressivo com ela. A relação durou até o começo do ano. Essa mulher afirmou que foi agredida e perseguida por ele, principalmente após o rompimento, e que ele surtava quando ela não respondia imediatamente a ele, tendo mandado 60 mensagens pelo celular numa das vezes.

Sobre a relação dele com Marcela, a amante contou que ele era arrogante e a tratava de forma fria e ofensiva, tratando-a como “se fosse uma empregada doméstica, sempre ofendendo com palavras fortes”. Ofensas contra a esposa também foram relatadas por outras testemunhas, como parentes, vizinhos, clientes de Igor e funcionários do condomínio.

No dia em que Marcela foi para o hospital, Igor levou a filha para a escola e chegou em casa às 13h54, segundo câmeras de segurança do condomínio. Por volta de 14h30, um casal que fazia atendimento nutricional com Igor esteve na casa dele e teriam visto ele chamando a mulher de burra, chamando a atenção o fato de ter feito isso sem alterar o tom de voz. Às 16h14, o nutricionista é visto saindo do condomínio já com a mulher deitada no banco de trás do veículo. Segundo a polícia, às 17h17 ele esteve na escola para pegar a filha, às 18h06 avisou a mãe de Marcela sobre a internação, às 19h30 chegou em casa com a criança e às 20h foi visto pelo mesmo casal de clientes na porta da casa.

Provas

Igor preferiu ficar em silêncio ao ser ouvido na delegacia, mas no hospital e para familiares e vizinhos deu versões um pouco diferentes sobre o que teria ocorrido. Em todas, ela teria se machucado ao cair no chão. Para alguns, contou que almoçava quando ela caiu limpando o xixi do cachorro e que a encontrou já tendo convulsões. Para outros disse que estava atendendo uma cliente e que ela estava passando um pano no chão e escorregou. No hospital, afirmou que deu um banho nela antes de levá-la à unidade de saúde. Ele também relatou que a viu convulsionando após a queda e que inicialmente deu um banho e a colocou para deitar com um pijama, mas depois como ela começou a sangrar pelo ouvido decidiu ir ao hospital.

O casal que esteve na casa momentos antes de Marcela ser levada ao hospital contou na delegacia que o nutricionista estava com um semblante mais sério do que o normal e que ao comentarem com ele ouviram de resposta que ele estaria dormindo. Em seguida, contam que viram quando Igor chamou a esposa de burra ao errar algo que estava sendo digitado no computador e que a relação dele com a mulher sempre foi fria.

Os peritos da Polícia Técnico-Científica (PTC) afirmaram em laudo que ao chegarem na casa para examinar o local encontraram o ambiente limpo e familiares do suspeito atrapalhando o trabalho. O mesmo relato foi dado quando agentes da Deam estiveram na casa dias antes e viram resistência de Igor em colaborar. Um morador do condomínio relatou na delegacia que o fisiculturista fez ameaças a quem deixou a polícia entrar no condomínio no dia 15.

Após a prisão de Igor, no dia 17, a polícia voltou à casa para tentar achar o celular de Marcela, porém encontrou familiares de Igor encaixotando móveis e objetos e já tendo retirado os aparelhos eletrônicos que havia na residência, como notebooks. O argumento dado é que estavam entregando a casa para o proprietário.

Procurada pelo jornal, a defesa de Igor informou que só se manifestaria a respeito da versão do nutricionista para o caso dentro do processo judicial.

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