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Má conduta de ginecologista preso por abusos era de conhecimento em Ciams de Goiânia

Prefeitura de Goiânia

Depoimentos de servidores do Centro Integrado de Atenção Médico Sanitária (Ciams) Novo Horizonte, em Goiânia, e de pelo menos quatro pacientes à Polícia Civil mostram que já havia críticas e suspeitas dentro do posto de saúde contra o ginecologista Fábio Guilherme da Silveira Campos, de 73 anos, antes de vir à tona o caso de violência sexual que o levou à prisão em 20 de julho. O médico foi inicialmente acusado de ter estuprado uma gestante de 35 semanas durante um atendimento no dia 27 de junho, mas depois mais 15 mulheres o denunciaram por uma série de abusos.

A delegada Amanda Menuci, adjunta da 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), encaminhou um segundo inquérito à Justiça contra o médico, indiciando-o novamente por estupro de vulnerável. Esta nova acusação se refere a uma consulta feita por Fábio Guilherme no final de 2014 no Ciams, poucos meses após ter iniciado o atendimento no local. A reportagem teve acesso ao processo e aos depoimentos das pacientes e dos servidores. Os relatos apontam que por diversas vezes o comportamento do médico foi relatado por pacientes aos servidores do posto.

A vítima neste segundo inquérito, uma mulher que na época tinha 22 anos, conta que após uma consulta com o médico chegou a reclamar na recepção, por duas vezes chamando-o de “tarado”, mas que não obteve nenhuma resposta dos funcionários. Ela estava em sua primeira gestação e, segundo o relato, o acusado a tocou intimamente fora do padrão de exames. A vítima afirma que só tomou coragem de denunciá-lo após vê-lo preso.

Esta nova vítima – uma das 16 que procuraram a delegacia a partir de julho – conta que voltou ao Ciams Novo Horizonte para um atendimento em 2022. Quando soube que seria encaminhada para o mesmo médico, se assustou e reclamou na recepção, chamando-o novamente de tarado e perguntando se não foi tomada nenhuma providência contra ele, sem ter uma resposta da pessoa que a atendeu. Ela desistiu da consulta com um ginecologista no local.

Há também outra paciente, que teria sido atendida ainda em 2015 e que estranhou a postura do médico, por ficar lhe tocando o corpo durante a consulta, e que comentou com uma técnica em enfermagem do local, conhecida dela, e que a mesma comentou ser de conhecimento dos colegas denúncias e comentários contra o médico, mas que nada foi feito até então por falta de denúncias formais junto ao conselho médico ou à secretaria.

Junto ao inquérito foi incluído o relato de outra paciente que, após uma consulta com Fábio Guilherme no Ciams neste ano no qual diz ter ficado indignada com os comentários e suspeitado da necessidade e da forma como foram feitos alguns exames, foi seguida pelo profissional até o consultório ao lado onde ela deu encaminhamento a exames pedidos por ele. A mulher disse que essa atitude dele não é comum e que acredita ter sido para se certificar de que ela não falaria nada a ninguém.

Uma quarta paciente relata que após consulta com Fábio Guilherme se sentiu violentada tanto pelos toques que ele fez como pelos comentários de cunho sexual e invasivos e que não quis agendar novos atendimentos mesmo com as funcionárias do Ciams insistindo para que o mantivesse como médico. Ela disse que se recusou a retornar ao posto em outras ocasiões tanto para evitar ver o profissional como por achar os servidores coniventes com a postura dele.

“Inadequado”

No final de julho, em depoimento na Deam, uma funcionária do Ciams relatou que no começo do ano, ou seja, antes do atendimento que resultou na prisão do médico, ela conversou com uma mulher chorando que lhe pediu ajuda para mudar de ginecologista porque se recusava a ser atendida novamente por Fábio Guilherme. No depoimento, só informa que foi feito o encaixe com outro.

Ainda na oitiva, ela afirma que sempre achou o ginecologista antiético, por causa dos comentários e piadas que ele fazia após os atendimentos, que deveriam ser sigilosos, e que ele costumava falar mal das pacientes. Ao final do depoimento, disse que o clima está péssimo no Ciams, com todos os servidores, incluindo ela, lamentando não terem notado as atitudes criminosas do médico e feito alguma coisa para impedir.

Esta funcionária e outra que também prestou depoimento na delegacia informaram que o médico não gostava de atender pacientes idosas e que reclamava quando eram feitos encaixes para ele fazer consultas com este perfil. Antes de cada atendimento, ele perguntava a idade da paciente, se era nova ou idosa. Agendamento é feito pelo sistema e encaminhamento, automático, mas encaixes, pelo que entende nas oitivas, não.

A outra servidora ouvida pela delegada reforçou também que o profissional tinha um “humor questionável”, que ele fazia piadas de mau gosto e inapropriadas e que isso era criticado por outros colegas nos corredores do Ciams. Ela relatou que os exames ginecológicos na unidade não são acompanhados por uma servidora por não haver gente suficiente no quadro.

Um agente em visita ao Ciams relatou que funcionários informaram sobre os comentários do médico sobre a situação das pacientes e a predileção dele por pacientes mais novas.

Acompanhamento

Em um parecer médico legal feito por uma médica perita da Polícia Técnico Científica (PTC) arrolado ao inquérito, é dito que a presença de um acompanhante deverá ser uma escolha da paciente e que caso ela não esteja acompanhada é recomendado que haja sempre uma enfermeira ou técnica durante a realização do exame ginecológico.

A perita explica que a legislação atual contempla a presença de acompanhantes apenas nos casos de atendimento a menores de 18 anos, gestantes, idosos e deficientes, tanto no serviço público como particular. Mas que nos outros casos o acompanhamento pode ocorrer se houver desejo manifesto por parte da paciente. Na resposta foram incluídos pareceres de conselhos regionais de Medicina do País recomendando a presença de um acompanhante ou até de enfermeira/técnica.

“No tocante à presença de profissional de saúde auxiliando durante a consulta ginecológica e/ou exames de imagem, esta deve ser a recomendação, tendo em vista a segurança de ambos os envolvidos no atendimento, assim como permitindo a melhor qualidade desta”, escreveu a profissional.

Padrão

Em seu relatório final no segundo inquérito, a delegada diz que é possível, com base nos depoimentos, observar um padrão nos possíveis crimes cometidos pelo médico. Um dos “traços marcantes” nas consultas, segundo ela, é uma excessiva e indiscriminada realização de toques sem luvas e sem que houvesse uma motivação específica justificada, muitas vezes massageando o clitóris das pacientes, “ato definitivamente incompatível com os exames”.

Outro ponto comum nos depoimentos são os comentários e colocações de cunho sexual, “inoportunas e inconvenientes”. “A imensa maioria das declarantes trouxe relatos que demonstram a postura antiética do médico, com colocações absolutamente pejorativas e rechaçadas pela classe médica.”

Os relatos das pacientes também mostram que o médico tinha resistência à presença de um acompanhante durante as consultas e exames, mas que nem isso impedia as atitudes que despertavam indignação e raiva das mulheres.

Sem mudanças

A prisão do ginecologista não levou a mudanças nos procedimentos em consultas com ginecologistas na rede pública. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) diz que todas as denúncias são “minuciosamente avaliadas e apuradas” por equipes das pastas, mas elas precisam ser feitas – seja por usuários ou servidores – junto à ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS). A secretaria reafirma que não houve qualquer reclamação referente à atuação de Fábio Guilherme antes.

Sobre a presença de acompanhantes ou enfermeiras e técnicas, a SMS afirma que é garantido às pacientes o direito a escolha de uma pessoa junto durante os atendimentos com ginecologistas, mas que não há nenhuma normativa do Ministério da Saúde que exija a permanência de profissional do sexo feminino. Mesmo assim, ainda segundo a SMS, se a paciente estiver desacompanhada, pode pedir a presença de uma profissional.

A SMS não quis responder o número de profissionais ginecologistas do sexo masculino na rede, argumentando não ser “relevante fornecer esse dado” e ressaltou o cuidado para não “generalizar a conduta individual de um profissional em relação a toda uma categoria”. Ao todo são 44 ginecologistas de ambos os sexos em 24 postos de saúde.

Fábio Guilherme consta na folha de pagamento da Prefeitura de Goiânia desde abril de 2007. Ele é servidor efetivo da Secretaria de Estado de Saúde (SES), cedido ao município.

O médico foi solto em 29 de agosto por decisão unânime da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), que acatou habeas corpus impetrado pela defesa, formada pelos advogado Rodrigo Lustosa e Matheus Borges.

A defesa afirma ter absoluta confiança na inocência do investigado e que isso será provado na oportunidade adequada. “É natural que em fase inicial haja maior volume de acusações do que contraprovas. As teses de acusação serão desconstruídas tendo em vista evidências e provas a serem apresentadas no andamento do processo. As denúncias apresentadas até agora contra são destituídas de provas e, portanto, inconsistentes sob todos os aspectos.”

Segundo os advogados, a Justiça entendeu que o médico não representa risco à sociedade. Os dois ressaltam em nota “o grande serviço prestado à saúde pública de Goiânia e Goiás, por mais de 40 anos” pelo acusado.

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