Um paciente diagnosticado com câncer em Goiás pode ser obrigado a esperar mais de um ano para ter o tratamento iniciado. Enquanto a lei determina atendimento em no máximo 60 dias, os dados dão conta de esperas muito mais longas, demonstrando o descompasso em que se encontra a realidade atual. Em 2022, apenas 40% dos pacientes conseguiram acesso à terapia médica dentro do prazo. “Quando eu consegui fazer o tratamento, o câncer já havia se espalhado. Foi para o meu fígado, tórax e crânio”, relata uma das vítimas da demora.O prazo para o início do tratamento de pessoas diagnosticadas com câncer foi estabelecido pela Lei 12.732, sancionada em 2012. O dispositivo prevê que dois meses é o prazo máximo, com destaque para o fato de o indicado ser o mais rápido possível. A determinação atinge tanto a rede pública como a privada. Ambas informam a um painel do Sistema Único de Saúde (SUS) os diagnósticos de pessoas com câncer, bem como precisam apontar em quanto tempo o tratamento foi iniciado.Por esses números informados aos SUS nos últimos três anos - 2020, 2021 e 2022 -, é possível constatar que o atendimento dentro do prazo tem se tornado a exceção. Enquanto em 2020 60% tiveram os tratamentos iniciados em 60 dias, em 2021 o porcentual caiu para 45% e em 2022 para 39%, sendo que os dados do ano passado são descritos como parciais. Muito além do prazo, há casos em que a espera ultrapassa um ano e, em menor número, outros alcançam dois. Para aqueles que esperam mais de um ano, a suspeita é de que permanecem na lista após terem morrido enquanto esperavam.Os números disponíveis no painel do SUS aparentam subnotificação, conforme alerta o médico Cláudio Brandão, presidente da Associação Estadual de Apoio à Saúde (AAS). A instituição acompanha diversos pacientes que enfrentam ou enfrentaram demora para o início dos tratamentos. A AAS solicitou os números de pacientes e o prazo em que foram atendidos entre 2020 e 2022 e o retorno indica pouco mais de 10 mil pacientes em três anos. No entanto, conforme dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES), só no ano passado foram diagnosticados 11 mil pacientes oncológicos. Ainda assim, os únicos dados disponíveis são os do painel.EsperaA dona de casa Marlucia de Freitas, de 49 anos, está entre os pacientes que demoraram para conseguir iniciar o tratamento. As dificuldades foram vividas já no diagnóstico de câncer de mama. O primeiro indício claro de que estava com um tumor maligno foi percebido em uma mamografia realizada em 16 de outubro de 2021. “A médica que fez o exame disse que eu tinha de começar o tratamento imediatamente, porque o tumor estava crescendo de forma assustadora”, conta. Ainda que o caso tenha sido apontado como grave, o exame diagnóstico definitivo só foi feito dois meses depois, em dezembro.A Lei 12.732 traz um artigo que mostra que a demora no diagnóstico de Marlúcia foi a primeira irregularidade. A determinação é de que diante de suspeita de câncer, os exames necessários devem ser feitos em no máximo em 30 dias. A demora foi ainda maior para o início do tratamento, com a primeira terapia apenas em 5 de abril de 2022, quatro meses após o diagnóstico definitivo e seis meses após descobrir, durante a mamografia, que tinha um nódulo crescendo de forma descontrolada. “Quando eu consegui fazer o tratamento, o câncer já havia se espalhado. Foi para o meu fígado, tórax e crânio”, conta a dona de casa que segue em tratamento na rede pública.No caso de Marlúcia, a espera foi ampliada por questões básicas como o erro de médicos no preenchimento de pedidos de exames. “Acontecia e eu tinha de voltar lá, marcar consulta e depois o exame. Eu falava que na mamografia a médica disse que era urgente. Eles diziam que era demorado mesmo, que tinha muita gente. Foi assim até começar o tratamento. E nisso o câncer foi só se agravando”, relata.“Fica a sensação de descaso. Descobrir uma doença dessa é muito difícil. A única coisa que vem na sua mente é que você vai morrer e que se você não começar logo o tratamento as poucas chances que tem de sobreviver você não pode usar. Talvez se eu tivesse começado naquele dia que eu descobri, não teria sofrido tanto e talvez ele não teria se espalhado”, conta Marlúcia, que segue em tratamento.Demora aumenta custo de tratamento para o SUS O médico Cláudio Brandão, da associação que acompanha pacientes que enfrentam ou enfrentaram demora para o início dos tratamentos, diz que a iniciativa de fornecer auxílios médicos e jurídicos a essas pessoas se deu diante de casos de câncer enfrentados pelo pai e pela mãe e de um tumor enfrentado por ele mesmo. “Eu já estive do outro lado do ringue”, diz o presidente. Para Brandão, a principal explicação para as longas demoras é o fator burocrático. “Não é falta de recursos e também não acredito que seja descaso intencional. Mas falta uma estrutura voltada para o atendimento do que prevê a lei, a partir da atenção aos prazos determinados”, avalia. “O gasto com o poder público tem em esperar um paciente piorar para iniciar o tratamento é óbvio. São tratamentos que inicialmente poderiam ser localizados, custando R$ 5 mil ou R$ 10 mil. Quando o quadro piora, esses cuidados sobem para R$ 100 mil ou muito além disso. Se o paciente precisar de UTI, por exemplo, e ficar lá 30 dias, representará um custo de no mínimo R$ 180 mil. Não estão fazendo conta”, diz o médico presidente da AAS. Ele destaca que esse problema é observado em todo o País.Para Cláudio Brandão uma das ferramentas para contornar o quadro seria um painel público com atualizações rotineiras sobre o cumprimento dos prazos. “Com isso nós poderemos falar ‘olha a gente tem cem pacientes que extrapolaram os 60 dias. Se fizermos isso de forma séria, tenho convicção de que haverá uma redução drasticamente nesses números absurdos”, pontua. Observando uma ação similar em curso em São Paulo, Brandão irá ingressar com uma ação civil pública (ACP) questionando a demora na garantia de tratamento em Goiás. A ACP de São Paulo foi ingressada pelo Ministério Público Federal (MPF) em outubro do ano passado. Na ação, o MPF requer que a União tenha maior transparência nos sistemas de filas e providência para o cumprimento dos prazos previstos em lei. GestõesA reportagem buscou contato com as gestões da saúde estadual e municipais para entender se há alguma diferença entre os dados do SUS e aqueles dos próprios sistemas. A Secretaria Estadual disse que para tratamentos oncológicos, Goiânia, Anápolis e Rio Verde são as unidades do SUS habilitadas pelo Ministério da Saúde em Goiás como gestores das Unidades de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) e dos Centros de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon), que fazem esses tratamentos no Estado. Demandada na manhã da última sexta-feira (18) sobre o número de pacientes diagnosticados com câncer em Goiânia nos últimos três anos, bem como o tempo para o início de seus tratamentos, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) não respondeu aos questionamentos encaminhados.Requerida ao mesmo tempo que a capital, Anápolis informou que entre 2020 e 2022 um total de 2.934 casos de câncer foram diagnosticados na cidade. Sobre o cumprimento do prazo, a gestão de saúde dos municípios repetiu que existe o limite de 60 dias para o início do tratamento, mas não informou qual a porcentagem dos pacientes foram atendidos dentro desse prazo. Já a gestão de Rio Verde não retornou com posicionamento.