20 anos após sumiço do menino Murilo, aos 12 anos, especialistas apontam que mortes decorrentes de intervenções de agentes ganharam espaço
Vinte anos após um dos sumiços mais emblemáticos relacionados à violência policial em Goiás, especialistas entrevistados pelo POPULAR apontam que, com o avanço das mortes decorrentes de intervenções policiais em detrimento de desaparecimentos após abordagens, a logística da atuação das forças de segurança mudou. Em 22 de abril de 2005, Murilo Soares Rodrigues tinha apenas 12 anos quando foi abordado, junto com um amigo, por equipes da Polícia Militar na Vila Brasília, em Aparecida de Goiânia. Depois da abordagem, nunca mais se soube o paradeiro das vítimas.
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Em 2011, O POPULAR denunciou -- na série de reportagens Os Desaparecidos da Democracia -- -- Onde eles estão? -- o sumiço de 23 pessoas após abordagens rotineiras da Polícia Militar. Depois, novas denúncias foram levadas à Polícia Civil e o número saltou para 36. No final de 2014, o desaparecimento forçado dessas 36 pessoas em Goiás entre os anos de 2000 e 2011 chegou a ser alvo de audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), nos Estados Unidos.
Com o passar dos anos, notícias sobre desaparecimentos do tipo ficaram cada vez mais espaçadas em Goiás, com destaque para casos como o da chacina do Residencial Solar Bougainville, em Goiânia, ocorrida no final de abril de 2018. Quatro policiais militares entraram em uma casa e mataram Matheus Henrique de Barros Melo, de 19 anos, que morava na casa invadida; o atendente de restaurante Marley Ferreira Nunes, de 17; e o assistente de mecânico Divino Gustavo de Oliveira, de 19. O estudante João Vitor Mateus de Oliveira, de 14 anos, que estava na casa, foi dado como desaparecido. Os policiais afirmam que seguiram ao local para apurar uma denúncia e foram recebidos a tiros. Familiares dizem que os garotos estavam jogando videogame.
Membro do Fórum Brasileiro Segurança Pública (FBSP), Bartira Miranda lembra que o sumiço de Amarildo Dias de Souza, em 2013, chamou a atenção de todo o Brasil para casos do tipo. Tratava-se de um ajudante de pedreiro que ficou conhecido nacionalmente por conta de seu desaparecimento após ter sido detido por policiais militares e conduzido até uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha, no Rio de Janeiro. Anos depois, alguns policiais foram condenados pela morte e desaparecimento de Amarildo. Bartira tambémdiz que a criação da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, em 2019, contribuiu. "Depois dela (a lei), a polícia tem de investigar", esclarece.
O coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira, explica que fazer um corpo desaparecer não é simples. "Para que sumir com o corpo? Dá trabalho e gera provas. E cria um outro 'problema'. Aquela pessoa não deixa de existir", diz. Na contramão dos desaparecimentos, existem as mortes decorrentes de intervenções policiais. "Se no caso do Murilo, por exemplo, tivesse existido simulação de confronto (com o pedreiro Paulo Sérgio Pereira Rodrigues, de 21 anos, que estava com o garoto), ele ficaria como uma morte colateral e outro (Paulo Sérgio) como o autor dos tiros. Precisa de mais explicação?", questiona.
Dijaci também aponta para um enfraquecimento da defesa dos direitos humanos nos últimos dez anos, o que torna as mortes decorrentes de intervenções policiais mais palatáveis para parte da população. "Era necessário criar a cultura do medo. Fortaleceu-se o discurso de que bandido bom é bandido morto", discorre. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (UB), é conhecido pela frase "Em Goiás, bandido muda de Estado ou muda de profissão". De acordo com especialistas, esse tipo de discurso aumenta a sensação de permissividade por parte das forças de segurança.
Quando comparados os anos de 2013 e 2023, as vítimas de homicídios dolosos em Goiás caíram de 2,5 mil para 1 mil. Em contrapartida, o número de mortes decorrentes de intervenções policiais saltou de 79 para 517, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O advogado popular membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Diego Mendes esclarece que as mortes causadas por intervenções policiais acabam se justificando por se tratarem de supostos ataques à polícia. "Ganham legitimidade social e 'lavam' a imagem da corporação", frisa Mendes, que também é pesquisador do Necrivi.
Mendes ainda aponta para mudanças que dificultaram os desaparecimentos, como o crescimento das zonas urbanas em detrimento das zonas rurais. "Existem menos lugares ermos para sumir com corpos", frisa. Além disso, ele destaca que a tecnologia aumentou a vigilância sobre as ações policiais. Um exemplo é o uso de equipamentos de localização por satélite (GPS) nas viaturas. "O celular é outra prova poderosíssima", ressalta. Em Goiás, o governador já se posicionou contra o uso de câmeras corporais em policiais mais de uma vez.
Em agosto de 2022, o servente Henrique Alves Nogueira, de 28 anos, morreu após ser abordado duas vezes pela polícia no mesmo dia -- a primeira de manhã, no Jardim Europa, e a outra à noite, no Setor Real Conquista, a 16 quilômetros de distância. Ambos são bairros de Goiânia. O caso teve bastante repercussão na época porque a primeira abordagem só se tornou pública após a mulher de Henrique ter percorrido a região atrás de informações sobre o paradeiro dele e ter encontrado as filmagens mostrando o momento em que os policiais fazem o servente entrar na viatura.
A segunda abordagem foi feita 12 horas depois e, na ocasião, os policiais não informaram ser o mesmo que viram mais cedo. No fim, prevaleceu a versão apresentada pela defesa dos policiais, de que houve uma coincidência e de que, na segunda vez, Henrique atirou primeiro contra os policiais e eles revidaram. O servente morreu após ser atingido quatro vezes. No final do ano passado, a Justiça absolveu os quatro policiais militares acusados de matar Henrique.
Queda de mortes se explica por vários fatores
No início da gestão de Ronaldo Caiado (UB), o número de mortes decorrentes de intervenções policiais cresceu em Goiás. Em 2019, foram 506 registros. No seguinte, foram 585. O ápice ocorreu em 2021, com 611 casos, conforme a própria Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás. Desde então, o número vem caindo. Em 2022, foram 535 casos e, em 2023, 517. A queda acompanha o cenário nacional. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 6.493 mortes do tipo no País em 2021. O número caiu para 6.455 no ano seguinte. Em 2023, foram 6.393 registros.
Segundo a SSP-GO, Goiás teve 381 mortes por intervenções policiais em 2024. Em nota, a pasta classificou a queda de 26% em relação a 2023 como um avanço significativo. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Bartira Miranda pondera que a redução precisa ser analisada com cuidado, pois o número ainda não apresenta consistência o suficiente para ser considerado uma queda sustentada.
O advogado popular membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Diego Mendes, atribui a redução a uma série de fatores: quantidade de casos noticiados pela imprensa, ações de controle interno para suprimir ocorrências do tipo, melhoria dos processos de investigação da Polícia Civil e a criação do Grupo de Atuação Especial no Controle Externo da Atividade Policial e na Segurança Pública (Gaesp) do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), em 2023. "Houve um aumento abrupto das mortes. Depois, começaram a se preocupar e o número caiu", explica Mendes, também pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da UFG.

Maria Khelma, Ana Mônica, Telma Regina e Maria Ramos formaram o coletivo Mães Pela Paz (Fábio Lima / O Popular)
Um exemplo é o caso da chacina do Residencial Solar Bougainville, em Goiânia, ocorrida no final de abril de 2018. As investigações ficaram paradas por quase dois anos, sendo que a Polícia Civil havia aberto um inquérito separado para apurar o caso de João Vitor Mateus de Oliveira como um desaparecimento. Em novembro de 2023, o Gaesp abriu um procedimento investigatório criminal (PIC) após reclamação formal de familiares das vítimas e de autoridades políticas.
Então, os promotores unificaram os inquéritos e passaram a tratar o estudante como uma possível vítima dos policiais. A denúncia do MP-GO contra quatro policiais pelas mortes dos quatro jovens ocorreu em dezembro de 2024, quase sete anos após o ocorrido. A primeira audiência de instrução e julgamento, ocasião em que os envolvidos no processo são ouvidos, ocorreu no início deste mês.
Uma mãe com o coração dilacerado
A vida de Maria das Graças Soares, de 55 anos, nunca mais foi a mesma desde que o filho caçula, Murilo Soares Rodrigues, desapareceu em 22 de abril de 2005, quando tinha apenas 12 anos. Aos 35 anos de idade, Graça, como é conhecida, era uma mulher ativa e que trabalhava como cuidadora em uma creche para sustentar os dois filhos. O sonho dela era vê-los adultos, traçando seus próprios caminhos. Hoje, ela passa a maior parte dos dias dentro de casa e depende de auxílio psicológico e medicamentoso para enfrentar o cotidiano.
Ao POPULAR , Graça conta que a vida perdeu o brilho desde que Murilo desapareceu. "O que eu ainda espero da vida? Nada. Não tenho nem vontade de viver, se você quer saber. As pessoas ainda me olham como uma doida, mas uma mãe que perde o filho assim não tem mais vida", desabafa. Depois que Murilo sumiu, Graça parou de trabalhar e começou uma peregrinação em busca de assistência psiquiátrica e psicológica na rede pública e privada.
Há anos, o caso do desaparecimento de Murilo e do pedreiro Paulo Sérgio Pereira Rodrigues, de 21 anos, que estava com o garoto quando ele foi abordado pela polícia, foi arquivado pela Justiça. "Corri muito, muito mesmo, mas não teve justiça", avalia Graça. Murilo e Paulo Sérgio foram vistos pela última vez na Avenida Tapajós, na Vila Brasília, em Aparecida de Goiânia. No dia seguinte, o carro em que estavam foi encontrado carbonizado, sem o equipamento de som automotivo e sem indício dos corpos das vítimas.

Parque Murilo Soares, no Setor Mansões Paraíso, virou refúgio para mãe ( Wildes Barbosa / O Popular)
Em 2020, a contragosto, ela recebeu uma certidão de óbito de Murilo em que está escrita "morte presumida". Entretanto, ela segue na luta para que a história não seja esquecida. No mesmo ano, um parque de Aparecida de Goiânia ganhou o nome do menino e uma placa com a foto dele. O local virou uma espécie de refúgio onde Graça busca conforto. "Ficou a imagem de que o Murilo está ali. É onde eu tenho para ir, conversar com ele, orar e pedir a Deus pra me dar um pouco de paz na vida", relata.
Quando não está no parque, o momento em que Graça consegue desfrutar de alguma tranquilidade é quando está com o filho mais velho e os seus três netos. Um deles se chama Murilo e tem apreço por futebol assim como tio, que tinha o sonho de se tornar jogador profissional. Além disso, ela preenche os dias vendo televisão e pesquisando por casos de pessoas desaparecidas e mães que perderam filhos. "Para ver se eu estou ficando doida ou se é assim mesmo (o sentimento)", conta.
O maior anseio da mulher é conseguir enterrar o filho. "São 20 anos sem o Murilo. Ele não desapareceu. Tiraram ele de mim com 12 anos. Uma criança. Vinte anos de luta e sofrimento. Sem respostas. Minha vida continua toda bagunçada. Eu queria que pelo menos algum desses envolvidos me informasse onde está o corpo do meu filho para eu poder enterrar", pede Graça em meio às lágrimas.
Organizações
No início deste mês, O POPULAR mostrou que a dor de mães que perderam os filhos por conta da violência policial levou quatro mulheres a criarem o coletivo Mães Pela Paz. Maria Khelma, Maria Ramos, Ana Mônica e Telma Regina são mulheres que tiveram as vidas afetadas para sempre pela chacina do Residencial Solar Bougainville, em Goiânia, ocorrida no final de abril de 2018. Inicialmente, o intuito era se organizar e pressionar as autoridades. Entretanto, o movimento se tornou um espaço de apoio mútuo que já reúne cerca de cem mães que perderam filhos e filhas nas mesmas condições em Goiás. Graça é uma das mulheres que fazem parte do coletivo.
Recentemente, foi criado o Grupo de Pesquisa sobre Violência Policial (GPVP -- Goiás), vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG). O intuito é realizar atividades e/ou integrar projetos de interesse do grupo e/ou da sociedade civil, assim como de agências governamentais dispostas a pensar e desenvolver práticas de enfrentamento à violência policial. "Nasceu da observação do drama vivido pelas mães e famílias dessas pessoas. Ficam procurando e não encontram respaldo dentro das instituições de segurança", comenta Dijaci David de Oliveira, coordenador do grupo.
SSP-GO defende ter política exitosa na segurança
Questionada sobre o assunto, a Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) informou que o Governo "tem sido referência nacional em políticas de segurança pública, com ações estratégicas que priorizam a proteção da vida, a transparência e o aprimoramento contínuo do trabalho policial".
Sobre as ocorrências envolvendo confrontos, a pasta comunicou que "todas as ações policiais são pautadas pela legalidade, em conformidade com os princípios constitucionais" e que "cada caso é devidamente apurado por inquérito policial militar, na Corregedoria da Polícia Militar e por inquérito policial pela Polícia Civil".
A SSP-GO ainda reafirmou o "compromisso com a conduta profissional e repudia qualquer generalização que desconsidere os riscos inerentes ao trabalho das forças de segurança, que atuam diariamente para combater a criminalidade e proteger a população"