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Peritos encontram indícios que contrariam versão de PMs em duplo homicídio

Divulgação
Vídeo gravado pelo celular de vítima mostrou parte da abordagem e foi usado para embasar reprodução

Peritos do Instituto de Criminalística (IC) da Polícia Técnico-Científica (PTC) de Goiás apontaram, com base no laudo de reprodução simulada dos fatos, uma série de falhas na versão dos policiais militares do Comando de Operações de Divisas (COD) acusados de matar duas pessoas durante abordagem feita em 1º de abril numa rua a 1,5 quilômetro do batalhão da especializada. Uma das conclusões, por exemplo, é que a arma encontrada no carro como sendo de uma das vítimas teria sido plantada por um dos acusados. A ausência dos policiais militares na execução da simulação, no dia 7 de junho, não afetou as conclusões apresentadas no laudo, ao qual o jornal teve acesso com exclusividade.

Um vídeo gravado aparentemente por um programa espião instalado no celular de uma das vítimas, o autônomo Junio José de Aquino, de 40 anos, mostra este se aproximando do veículo em que estava um amigo seu, o corretor Marines Pereira Gonçalves, de 42 anos, e pedindo para abrir o carro porque ele estaria acompanhado dos policiais. Em seguida, ambos foram mortos em uma abordagem feita por uma equipe operacional do COD comandada pelo segundo tenente Wandson Reis dos Santos e uma do serviço de inteligência do comando chefiada pelo primeiro tenente Allan Kardec Emanuel Franco.

A simulação dos fatos foi feita tendo como base as imagens que aparecem no vídeo e os depoimentos de Allan Kardec e do soldado Diogo Eleuterio Ferreira, que na ocasião atuava como motorista do primeiro tenente. Os outros quatro acusados se recusaram a falar nos depoimentos à Polícia Civil. O documento foi encaminhado à Justiça nesta segunda-feira (2), pois o inquérito já foi concluído pela Polícia Civil com o indiciamento dos policiais por duplo homicídio qualificado e fraude processual. O Judiciário também já acatou a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) e os tornou réus.

Armas plantadas

Os peritos afirmam que uma das armas encontradas no interior do carro em que estava Marines, uma pistola Taurus calibre .380 é a mesma que aparece no vídeo sendo manuseada por Wandson após Junio e Marines terem sido baleados. O tenente aparece ao lado de outro policial que estava segurando uma sacola plástica e dá dois tiros com esta pistola em direção ao solo. O vídeo mostra dois estojos sendo ejetados da pistola no momento dos disparos e, após análise, foi constatado que eles coincidem com a arma no carro.

No registro da ocorrência feito pelos policiais, a arma no carro teria sido usada por Marines. O laudo aponta o contrário. “É factível que se esteja diante de uma inovação de local promovida por tiros forjados e possível acréscimo de uma arma que, talvez, nem estivesse com nenhum dos dois indivíduo abordados naquela ocasião”, afirmam os peritos.

Eles também citam outra perícia, feita no dia da ação policial, apontando que a pistola foi deixada engatilhada, pronta para um tiro ser efetuado. Se a versão dos acusados fosse verdadeira, de que Marines não morreu imediatamente, mas que chegou a ser socorrido com vida, então eles não agiram corretamente por deixar a arma daquele jeito próxima de um suspeito vivo. “Em suma, chamou a atenção do perito responsável pela perícia de local, o fato de o socorro à vítima não ter sido precedido pela remoção da arma, com potencial de risco tanto para os socorristas, quanto para os próprios policiais ali presentes.”

A outra arma apontada pelos policiais como sendo a de Junio, vista ao lado de onde a vítima foi baleada, também pode ter sido plantada, na conclusão dos peritos. Isso porque o policial que aparece no vídeo segurando uma sacola plástica, o segundo sargento Marcos Jordão Francisco Pereira Moreira, em seguida tira algo envolvido em um pano, se abaixa e são ouvidos dois estampidos semelhantes a tiros de uma arma de cano curto. O revólver Taurus calibre .380 foi deixado no solo com dois estojos deflagrados.

“Diante disso e mais uma vez, é factível que se esteja diante de uma inovação de local promovida por tiros forjados e possível acréscimo de uma arma que, talvez, nem estivesse com nenhum dos dois indivíduos abordados naquela ocasião”, afirmam os peritos. Eles também voltam a citar o lado da perícia no local que a arma foi deixada em cima de uma mancha de sangue, mas com a parte de cima intacta, o que sugere que foi deixada ali por terceiros.

Celular sumiu

No laudo é citado o desaparecimento do celular de Junio e de um acessório semelhante a uma pochete preta que aparece nos segundos iniciais do vídeo antes que a perícia comparecesse ao local após a abordagem. Os policiais não citam o que foi feito com estes materiais. “Nesse diapasão, a possibilidade mais concreta é que o autor das subtrações tenha sido algum (ou alguns) dos policiais que atuaram na ocorrência e aqui já nominados, ou outra pessoa, mas com o consentimento deles”, afirmam os peritos que fizeram a reprodução simulada.

Os depoimentos dados na Polícia Civil confirmam, segundo os peritos, a conclusão sobre a responsabilidade pelo sumiço do celular e da bolsa. Isso porque, pela fala de ambos, tanto Diogo como um outro soldado ficaram responsáveis por cuidar do isolamento do local, evitando a aproximação de civis e curiosos. “É inegável, portanto, que dificilmente alguém conseguiria adentrar aquele local e retirar dele os referidos objetos, sem ser visto por algum dos policiais.”

Corpo movimentado

Chamou a atenção dos peritos também a versão apresentada por Allan Kardec, que aparece no vídeo arrastando o corpo de Junio após ter sido baleado. O tenente afirma que tomou esta decisão por ter sido informado de que o autônomo estava armado e percebeu que próximo à mão dele estava a arma. O vídeo mostra na verdade Junio segurando o celular numa mão e a outra vazia. Porém, os peritos destacam que o policial poderia ter agido de outra forma.

“Tem-se então a exposição de um policial, corroborada por seu companheiro, de que, por medidas de segurança, optou por arrastar o corpo de uma vítima de sua posição de repouso, quando podia tão somente e empreendendo bem menos esforços, ter removido a arma do local, sem mexer no corpo, algo bem mais coerente e plausível.”

Além disso, a reprodução simulada apontou que na verdade Allan Kardec, pela posição que aparece no vídeo, teria arrastado algo ou alguém de dentro do carro. Se for mesmo um corpo, como ele disse, seria o de Marines então. “Essa sequência de ações, que Allan Kardec assumiu para si em seu depoimento, como se tivesse movimentado o corpo da vítima que foi alvejada fora do carro, se mostrou na simulação, bem mais compatível com a movimentação de um ocupante do veículo, de dentro para fora, sendo puxada pela vão da porta dianteira direita.”

A versão dos peritos que fizeram a reprodução simulada bate com a do laudo no local do crime, onde os profissionais estranharam o fato de haver mais sangue próximo à porta de passageiro do que no assento onde Marines estava ao ser baleado. “A pouca quantidade de sangue no interior do veículo indica a possibilidade da vítima ter sido retirada rapidamente, visto que apresentava lesões severas.”

Outro ponto levantado pelos peritos é que o principal alvo dos policiais foi Marines, mais do que Junio. Isso pela disposição dos policiais, das marcas de tiros no carro e dos estojos encontrados no chão. Marines foi atingido por cinco disparos, enquanto o amigo, por três.

Entenda o caso

Além dos policiais já citados, também participaram da abordagem e respondem ao processo como réus o sargento Wellington Soares Monteiro e o soldado Pablo Henrique Siqueira e Silva. No inquérito feito pela corregedoria da PM-GO foi dito que Junio foi morto por disparos da arma de Wandson e Marines das armas de Marcos Jordão e Wellington. Pablo Henrique teria, assim como Diogo, feito a cobertura do local, impedindo a aproximação de terceiros.

As investigações feitas pela Polícia Civil e pela corregedoria da PM-GO não avançaram na motivação para o crime cometido pelos policiais. O jornal mostrou que os acusados chegaram a pesquisar o nome de Marines no sistema da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO) horas antes de ele ter sido abordado com Junio, contradizendo versão dos policiais de que só ficaram sabendo de Marines após ele ter sido baleado.

Um vídeo que chegou ao inquérito mostra Junio comentando que iria pegar um “trem” na sede do batalhão do COD numa segunda-feira (ele e Marines foram mortos também numa segunda). No processo que tramita na Justiça, tanto a Polícia Civil como o MP-GO afirmam que Junio teria ido buscar um pacote relacionado a tráfico de drogas e que sua morte pode ter sido uma queima de arquivo.

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