Para analistas, histórico de conflitos deixa incerteza sobre se nova convergência retomada em virtude da defesa pela anistia aos ataques de 8/1 se estenderá para disputa eleitoral
A retomada do relacionamento político entre o governador Ronaldo Caiado (UB ) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), iniciada no fim de março, cumpre o pragmatismo de ambas as partes e não apresenta solidez para se confirmar em projeto conjunto para a eleição presidencial de 2026. A avaliação, segundo especialistas ouvidos pelo POPULAR , aponta o histórico de desavenças e brigas públicas entre os dois e as dificuldades de viabilização do pleito do goiano ao Palácio do Planalto .
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No último mês, o ex-presidente tomou a iniciativa de reiniciar as conversas, por telefone, depois da intensa disputa travada contra Caiado nas eleições municipais de 2024, em cidades importantes mas principalmente em Goiânia. O foco da reaproximação é a defesa pelo projeto de anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Desde o recomeço, Caiado participou da manifestação bolsonarista na Avenida Paulista, no último dia 6, e aliados passaram a nutrir a esperanças de que, sem a presença do governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos) na corrida presidencia l, o governador possa ser o ungido pelo ex-presidente para a disputa, no campo da direita.
Essa aproximação tem a ver com a reorganização da direita no Brasil, iniciada em 2017, em que a oposição ao PT deixou de orbitar o PSDB e passou a ficar na órbita do Bolsonaro. Desde então, houve alguns litígios, como durante a pandemia, mas Caiado nunca deixou de integrar, em alguma medida, esse sistema em torno do ex-presidente na direita", analisa o professor da PUC Goiás, Pedro Pietrafesa.
Sabendo da força do bolsonarismo nesse eleitorado de direita, o Caiado se reaproxima para ver se tem o mínimo de condições para confirmar a candidatura. A intenção é estar pelo menos próximo do ex-presidente e, para isso, ele vai marcar presença em eventos e manter interlocução, apesar das divergências anteriores", reforça ainda o cientista político.
Já o professor de ciências sociais da UFG, Guilherme Carvalho, aponta que a nova aproximação "muito pragmatismo político mútuo". "A ponte entre o Caiado e o bolsonarismo está dinamitada e não será reconstruída. Essa é uma aliança apenas pragmática", considera.
A principal intenção do Bolsonaro é buscar apoio à anistia, enquanto que, para o Caiado, é o apoio à pré-candidatura dele. O Caiado não deve obter nenhuma sinalização direta, mas, só estar mais próximo, pode passar uma percepção de unificação para esse campo mais amplo da direita, o que, na prática, não é verdade. Há uma situação clara de que esse apoio não deve se concretizar, porque o Bolsonaro precisa de uma candidatura que se comprometa, inclusive, com a anistia dele", avalia o professor.
Para o Caiado, essa aproximação tem o único condão de voltar para o bolo da direita e tentar compor seu time, buscando luz própria. O fato é que o governador não consegue, no cenário nacional, a construção de um grupo próprio, mesmo que pequeno, como ocorreu no cenário estadual em 2018", aponta Carvalho. "Não é possível pescar lideranças de nível nacional que possam apoiá-lo, sem que o Bolsonaro dê esse palanque para ele", diz o cientista político.
Mas tem ficado claro que Bolsonaro vai dar o palanque, mas não vai dar protagonismo. Então, é uma aproximação puramente pragmática e sem muito compromisso de ambas partes", completa o professor.
O especialista ainda afirma que as incertezas sobre a nova parceria partem do histórico de entreveros entre o governador e o ex-presidente. Para Carvalho, os dois fazem parte de "diferentes direitas".
Caiado é um político muito mais consistente que o Bolsonaro. Na matéria da pandemia, por exemplo, ele não tinha visivelmente muito algo a ganhar ao se contrapor ao Bolsonaro. Prova disso é que esse afastamento foi percebido e a base do Bolsonaro que, até então, tinha uma relação muito boa com o Caiado, ficou estremecida inclusive do ponto de vista eleitoral para os pleitos seguintes", relembra o cientista político.
Divergências
Depois da lua de mel, durante o primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro, a chegada da pandemia marcou o primeiro afastamento entre os dois. Ainda em 15 de março, o governador foi a uma manifestação contra as medidas de isolamento social, na Praça Cívica, afirmou não precisar dos votos dos bolsonaristas e confirmou a determinação de isolamento social.
Apenas 10 dias depois, Caiado teve rompimento com o então presidente, em repercussão ao pronunciamento em que Bolsonaro chamou a pandemia de "gripezinha" e "resfriadinho". Caiado anunciou que o estado trabalharia de forma independente da União e disse que "tanto na política como na vida, a ignorância não é uma virtude".
Apesar da troca de elogios em eventos posteriores, ainda em 2020, a relação entre os dois não retomou o entrosamento mostrado em 2019 e novas pautas voltaram a afastá-los. Bolsonaro e o governador encerraram o ano de 2021 com troca de ataques sobre o preço dos combustíveis e a possibilidade de redução do ICMS.
O ex-presidente chamou Caiado de "mentiroso" e disse que a forma de tributação era "um crime". "Nesses 3 anos, o ICMS mais que dobrou o valor na ponta da linha. Tem um governador de Goiás que falou que eu estava mentindo porque o percentual não tinha variado. Mentiroso é ele, porque além de ele cobrar em cima do preço final da bomba, é bitributado", disse Bolsonaro na época.
Caiado rebateu sem citar o ex-aliado e o assunto voltou a gerar divisão em março de 2022, quando a União propôs e sancionou a alteração da cobrança do imposto. O governador passou a responsabilizar a medida do governo federal por nova crise fiscal e financeira no estado, até a criação da taxa do agro, em dezembro daquele ano.
O acúmulo de desgastes resultou na divisão entre o PL e a base do governo estadual para a disputa das eleições de 2022, em que Caiado teve vitória no primeiro turno. Assim como em 2018, o goiano não se preocupou no primeiro turno em dar apoio explícito ao pleito de Bolsonaro, que teve palanque estadual próprio, com a candidatura do então deputado federal Vitor Hugo (PL) , ao governo. Apesar do engajamento no segundo turno, os dois grupos políticos seguiram caminhos opostos no estado.
Dois anos depois, o afastamento se consolidou com o confronto direto entre Caiado e Bolsonaro nas eleições municipais de 2024, principalmente em Goiânia. Cada um com seu candidato, o ex-presidente chamou o governador de "covarde" em um dos discursos, enquanto o goiano pregou o combate ao "extremismo", com foco "em quem sabe administrar".
Formalmente ainda na oposição ao Palácio das Esmeraldas, o PL decidiu relevar as brigas anteriores em acordo político acertado na última semana. O acerto levou a sigla a não recorrer da decisão do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE-GO) que devolveu a elegibilidade do governador. O movimento representa reaproximação entre a base governista e o partido de Bolsonaro em Goiás, depois que o ex-presidente criticou a inelegibilidade de Caiado durante discurso na manifestação de 6 de abril, em São Paulo.
Modulação
Caiado voltou a se distanciar do bolsonarismo logo depois do fim do governo do ex-presidente, ao divergir frontalmente sobre os atos ocorridos em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Enquanto Bolsonaro minimizou o ocorrido, o goiano rejeitou as invasões e enviou forças do estado para auxiliar os trabalhos de segurança em Brasília após as invasões a prédios públicos.
O governador ainda disse que "o fato mais nocivo" foi o ex-presidente ter levantado a tese de que as urnas poderiam não representar a vontade do eleitor. "Cabe ao líder não dar espaço às pessoas extremadas", disse.
O discurso, no entanto, passou por modulação ao longo dos últimos dois anos. Depois das posições duras contra os invasores, em 2023, Caiado passou alterou o tom a partir de fevereiro de 2024, quando defendeu, em entrevista à Globonews, a anistia aos envolvidos nos atentados. À época, a fala ocorria como pretexto para criticar o presidente Lula, com avaliação de que o petista escolhia manter a polarização ao invés de governar o país.
A retomada de contatos entre Bolsonaro e o governador ocorreu justamente após nova defesa de Caiado pela anistia, quando o ex-presidente telefonou para agradecer pelo posicionamento e convidá-lo para a manifestação ocorrida na Avenida Paulista.
O discurso do Caiado sobre a tentativa de golpe ou o projeto de anistia é essencialmente pragmático. Em 2023, as ações para a quebra da ordem democrática no país foram muito claras, naquele 8 de janeiro. Só que não deu certo e alguns políticos, entre eles o Caiado, criticaram aquele movimento golpista. O governador, então, percebeu que vai precisar dessa parte do eleitorado e dessas lideranças políticas bolsonaristas", avalia o cientista político Pedro Pietrafesa.
O caminho é de um movimento pragmático de busca de interlocução com esse grupo mais radical de extrema direita que temos no Brasil, num cenário de crescimento deste espectro. Os nomes apontados como pré-candidatos da direita se posicionam em diálogo com o grupo de Bolsonaro e o Caiado entende que não pode ficar fora deste processo", completa.
Já Guilherme Carvalho avalia que o apoio à anistia e a outras pautas que sejam levantadas pelo ex-presidente são parte fundamental da possível viabilização do projeto nacional do governador.
O movimento relacionado ao lançamento da pré-candidatura do Caiado foi muito aquém do esperado e ele já manifestou que sabe que se não mostrar viabilidade, estará fora do jogo. Então, de alguma maneira, mesmo não sendo um bolsonarista de primeira hora ou alguém que cerra fileiras dentro desse campo, ele precisou modular esse discurso e voltar a coisas que ele próprio não defendia. A leitura é de que isso é um mal menor diante da busca por viabilidade na direita", considera.
Isso é uma tendência e vai continuar acontecendo. No caso de eventual prisão de Bolsonaro, muito provavelmente Caiado vai ser um dos que vai visitá-lo e fazer um movimento em torno disso, justamente porque ele precisa ser percebido como alguém que está próximo para não ser retirado de vez da corrida, que ainda não é por votos. Por enquanto, é uma corrida institucional, por apoio de lideranças e partidos. É isso que está em jogo e o Bolsonaro tem algumas chaves de acesso", diz Carvalho.

Brigas e reconciliações de Caiado e Bolsonaro (Arte O Popular)