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Quilombola festeja 102 anos em Aparecida de Goiânia

Diomício Gomes
Dona Maria das Dores (Quilombola) chega aos 102 anos e vai ter festa para comemorar o aniversário

Todos os dias, quando acorda, o olhar de Maria das Dores Francisco segue as fotos na parede do quarto que trazem algum significado para a sua vida de 102 anos que ela completa neste 5 de abril. Ao lado da cama está a fotopintura dos pais, um casal de mineiros que a trouxe para o mundo. Embora a memória esteja falha, o sorriso não a abandona quando é questionada sobre a pele centenária pouco enrugada. “É o modo de viver”, responde.

A “Vozinha”, como é conhecida pelos familiares e moradores do Setor Cristina, na região Sudoeste de Goiânia, também conhecida como região do Nem - nem Goiânia, nem Aparecida - vive rodeada da grande família que gerou. A centenária é matriarca do quilombo urbano situado no Jardim Cascata, em Aparecida. Este “modo de viver” é o que a faz feliz. “A vida é boa porque a família é reunida”, afirma. E grande parte dessa prole de nove dos 15 filhos gerados, 27 netos, 48 bisnetos e 15 trinetos, estará perto no sábado (8) celebrando seus 102 anos durante um culto de Ação de Graças. Também vão marcar presença os irmãos caçulas Maria de Lourdes, de 96 anos, e Ailton, de 80.

Maria das Dores e Elias Antônio Francisco se casaram na terra natal, Campo Belo (MG), e com os primeiros filhos vieram para Goiás desmatar terras e plantar como meeiros para os lados de Uruana. Ela residia em um quilombo no município mineiro, chamado Campo Grande. A vida era na roça, sem escola. “Minha mãe nunca estudou, nunca aprendeu a ler e nem nós as mais velhas”, relata Wilma das Dores Martins Ambrózio, de 80 anos, que tinha dois anos quando a família enfrentou a longa viagem. Os homens com quem ela e as irmãs se casaram, pensavam como o pai: mulher tinha de ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos.

“Eles nos educaram muito bem. Sempre foram bons pais. Ele se arrependeu muito de não ter deixado a gente estudar porque, perto de morrer, percebeu que ‘o mundo tinha mudado’”. Maria das Dores e Elias se transferiram para Anápolis onde ele continuou na lida rural, trabalhando em chácaras da região. Lá também ajudou a construir a estrada de ferro. O casal decidiu vir para a capital em busca de mais recursos para manter a família.

Foi ali, na região do Nem, que se enraizaram os Francisco. A casa ampla de esquina tem sempre barulho, de vozes altas, de latidos dos cães, da comida preparada na cozinha ou até mesmo do caminhar lento da matriarca em busca de uma vassoura para tirar as folhas do quintal. É uma incontestável casa de vó. E seu sorriso aberto está estampado nas muitas fotografias espalhadas pelos cômodos. A neta Márcia Vinícia Ambrózia, de 53 anos, técnica de enfermagem, e o marido Wanderley, se desdobram nos cuidados com a avó. “Ela adora se cuidar. Ao levantar, faz a cama, se higieniza e arruma o cabelo. Gosta de ficar bonita”, conta Márcia.

Vozinha sempre disse não para qualquer tipo de maquiagem, mas adora ficar cheirosa como denunciam os cremes, o talco e a colônia no quarto. O segredo da vivacidade está nos olhos sempre atentos e ela mesma explica: “Gosto de ficar com os olhos bem vivos. A gente sendo boa, os olhos acompanham.” Já levou o ar de sua graça duas vezes para a Itália onde vive a filha caçula e, de vez em quando, não dispensa um trago de vinho. Inquieta, sempre pergunta à neta qual é o trabalho do dia. “Ela mexe com as plantas, descasca o alho, corta verduras, lava as vasilhas e varre o quintal. Dou atividade porque ela se sente bem.”

O médico Jorge Nabuth Júnior, que a acompanha, é uma das paixões extra-familiares cultivadas por Vozinha. Ele e Maguito Vilela, ex-prefeito de Aparecida de Goiânia, que morreu em janeiro de 2021 vitimado pela Covid-19, ganharam imagens no painel fotográfico do espaço íntimo da matriarca. Ao ouvir a menção ao nome de ambos, os olhos brilham e o sorriso esboça a confirmação.

Tragédia abalou memória

Um movimento diário revela à Márcia o quanto a “Vozinha” é grata pelo teto que a acolhe. “Todos os dias, depois de se arrumar, ela chega na entrada da cozinha e fala: ‘Graças a Deus estou na minha cozinha!’.” Há muito deixou de levar ao fogo o arroz, o feijão, o jiló e algum tipo de carne que ela tanto ama. Agora é cercada de cuidados. “Ela vinha esquecendo o fogão aceso”, revela Márcia. Há poucos dias, Vozinha a surpreendeu com um punhado de carvão colocado sob a trempe do fogão a gás preocupada em acender o fogo como nos velhos tempos do fogão a lenha. 

É o preço da longevidade. Márcia explica que a avó sempre foi uma mulher ativa e até os 96 anos mantinha uma lucidez invejável. Depois de uma tragédia em família, começou a perder a memória. Em janeiro de 2010, uma neta e dois bisnetos perderam a vida num acidente na Avenida Rio Verde, no Jardim Helvécia. Outros dois bisnetos ficaram feridos. “A família é grande e é a minha maior alegria. Eu não gosto de chorar.”

Maria das Dores Francisco cuida dos cabelos brancos com esmero e dá uma aula de sabedoria em pouco tempo de conversa, mesmo com os sinais da demência. Atravessar o portal dos cem anos pode não ser uma tarefa fácil, mas para ela são quatro os pilares que ajudaram a travessia: felicidade, paciência, vigilância e pouca conversa.

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