O STF (Supremo Tribunal Federal) votou nesta quinta-feira (19) para derrubar a validade da lei que autorizou pacientes com câncer a fazer uso da fosfoetanolamina sintética, a chamada "pílula do câncer".Por 6 votos a 4, os ministros entenderam que a liberação da "pílula do câncer" deve ser interrompida por dois argumentos centrais.O primeiro é que não há testes científicos suficientes que comprovem que o composto seja seguro e eficaz sem colocar em risco a saúde dos pacientes. O outro defende que a norma editada pelo Congresso invadiu competência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).Votaram para suspender a validade da lei da pílula do câncer os ministros Marco Aurélio Mello, Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.Os ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes defenderam que a medida tivesse validade apenas para casos de pacientes com câncer em estágio terminal.O STF concedeu uma liminar (decisão provisória) pedida pela AMB (Associação Médica Brasileira) em uma ação que questiona a liberação da fosfoetanolamina. Segundo a entidade, no país coloca em risco a segurança e a saúde dos pacientes e abre precedente para que outras drogas sejam ofertadas à população sem que haja comprovação de segurança e eficácia.A lei que permite a produção, importação, distribuição, prescrição e uso da fosfoetanolamina sintética vêm sendo alvo de críticas desde que foi sancionada, em abril deste ano, pela presidente Dilma Rousseff, às vésperas da votação do seu processo de impeachment na Câmara dos Deputados.Representantes do Ministério da Saúde e da Anvisa, entre outros órgãos, chegaram a recomendar que o projeto, aprovado em votação simbólica no Congresso, fosse vetado. A avaliação é que a forte pressão de pacientes e do Congresso em meio à crise política interferiu na decisão.A lei autoriza pessoas com câncer a utilizarem a fosfoetanolamina "por livre escolha", desde que apresentem laudo médico com a comprovação do diagnóstico e assinem termo de consentimento e responsabilidade.A liberação, assim, ocorreria em "caráter excepcional", até que os estudos sejam finalizados. Segundo o texto, a fiscalização caberia a autoridades sanitárias - a Anvisa, no entanto, alega que não é possível fazer esse tipo de controle.Risco aos pacientesPara a maioria dos ministros, a ausência de testes, como exige a Anvisa para que novos medicamentos sejam comercializados no país, coloca em risco a vida dos pacientes."O fornecimento de medicamentos não pode ser com atropelos de requisitos mínimos de segurança para o consumo da população sob pena de esvaziar o próprio conteúdo do direito nacional à saúde", disse o relator do caso, ministro Marco Aurélio.Barroso afirmou que não seria legítimo "transferir" do Poder Executivo para o Legislativo a autorização de uso de substância que não passou pelo crivo da Anvisa.Para ele, a lei acaba por dar a visão que o Estado endosse o uso da substância. "A solução nunca deverá ser a liberação para o consumo, mas o incentivo à realização de uso [em teste] científico com protocolos. Trata-se de decorrência básica do princípio da precaução".Na avaliação dos ministros que defenderam o uso para pacientes terminais, a previsão consta numa resolução da Anvisa de 2013 que trata do uso de medicamentos ainda sem registro, mas que apresentam indícios de eficácia, para uso compassivo por pacientes."A Anvisa não detém competência privativa para autorizar a comercialização de qualquer substância. [...] O Congresso pode reconhecer o direito de pacientes terminais a agirem ainda que tenham que assumir riscos desconhecidos em prol de um mínimo de qualidade de vida", disse Fachin.A Anvisa tem alegado, no entanto, que a fosfoetanolamina não se encaixa na resolução, por não ser um medicamento e não ter indícios mínimos de eficácia, apenas relatos individuais.A ministra Cármen Lúcia rebateu essa tese de liberação para pacientes terminais: "Eu não sei como é que se define paciente terminal. Já tive muito próxima de uma pessoa que se tratava por paciente terminal e três morreram antes dela. Não foi combinado por Deus. Nem pelo destino", disse.Segundo a ministra, é preciso cautela, mesmo diante da dor que nos leva facilmente a aderir a alguma coisa sem passar pelos procedimentos de segurança, para não ser a pílula do câncer mais uma pílula de enganos a quem se depara com o desengano [sobre o tratamento e a cura]".Presidente do STF, Lewandowski disse que abrir brecha para que o Congresso legisle na área da farmacologia representa um "precedente perigoso para saúde da população."Ministros chegaram a citar artigo do médico Raul Cutait publicado nesta quinta-feira na Folha*, segundo o qual as doenças devem ser entendidas à luz da ciência.No artigo, Cutait diz que "a esperança é fundamental e os médicos devem fazê-la constar de seus receituários, colocando-se como parceiros de seus pacientes em suas batalhas contra a doença, mas não devem oferecê-la sem o devido embasamento científico, sob o risco de promover o charlatanismo. "PolêmicaNo julgamento, o coordenador-jurídico da AMB, Carlos Michaelis Jr, alegou que a lei, da forma como foi feita, é "esquálida" e pode estimular que pacientes abandonem o tratamento convencional, o que pode trazer prejuízo à saúde."Haverá um aumento das mortes pelo abandono do tratamento convencional já existente", disse. Segundo ele, a associação não é contra a substância, mas sim contra sua liberação sem que os estudos estejam concluídos. Ele lembra que a fosfoetanolamina nunca passou por testes em humanos que pudessem comprovar sua segurança, eficácia e mapear possíveis contra-indicações."Queremos que qualquer substância passe pelo rito comum [de pesquisas], sem truculência, baseada em estudo com forte evidência e comprovação científica. É assim que a medicina funciona e evoluiu", afirma.A polêmica em relação à fosfoetanolamina começou quando a substância, que era estudada na USP de São Carlos e distribuída a pacientes por pesquisadores como Gilberto Chierice, teve a sua produção interrompida.A suspensão culminou em uma enxurrada de ações judiciais para obrigar a USP a liberar a substância. O ministro do STF, Edson Fachin, concedeu liminar em que libera o produto. Na época, ele alegou que a medida foi uma "exceção".O debate ganhou força devido ao fato de que, embora tenha sido desenvolvida há 20 anos, a pílula nunca passou por estudos clínicos que comprovem sua segurança e eficácia.Os únicos testes realizados ocorreram por meio de técnicas in-vitro e em animais. Não houve pesquisas em humanos, consideradas essenciais para comprovação da segurança e eficácia."Como o médico indicava e o paciente estava melhorando, eu pensei: que mal haveria em dar?", declarou Chierice à reportagem, em março deste ano.Em meio às discussões, o MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) anunciou no fim de 2015 que investiria R$ 10 milhões para testar a eficácia da fosfoetanolamina, a começar por ensaios com animais de laboratório.Primeiros testesAo mesmo tempo, o governo estadual de São Paulo traçou um plano para iniciar estudos controlados da molécula com cerca de 200 pacientes humanos.No entanto, os primeiros resultados de testes independentes com a pílula divulgados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia não foram bons. Segundo as análises, ela teve desempenho muito inferior ao de drogas anticâncer já disponíveis há décadas.Testes também mostraram que apenas 32% da pílula era composta, de fato, por fosfoetanolamina. O restante era de outras substâncias, como a monoetanolamina - a única, aliás, que mostrou efeito razoável em testes antitumorais.Defensores da pílula rebateram os resultados. Eles alegam que a ordem de grandeza testada foi menor do que em outros testes e que o aparecimento de outras substâncias poderiam ser "produto de degradação durante o processo de análise".Dias após a divulgação dos primeiros resultados, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, autorizou a USP a interromper o fornecimento da pílula aos pacientes depois de acabar o estoque.Na decisão, ele ressaltou que "a inexistência de estudos científicos que atestem que o consumo da fosfoetanolamina sintética seja inofensivo ao organismo humano".