As contribuições cobradas pelas Associações de Pais, Mestres e Funcionários (APMF) de colégios militares de Goiás podem causar situações de constrangimento e discriminação para os estudantes que estão matriculados nessas instituições de ensino e optam por não contribuir. Estudantes dizem que se sentem pressionados para fazerem os pagamentos. O Comando de Ensino da Polícia Militar de Goiás (CEPM), porém, diz que não há obrigatoriedade.Reportagem publicada nesta terça-feira (9) mostrou que alunos do Colégio Estadual da Polícia Militar José Silva Oliveira, em Goianira, na Região Metropolitana da capital, foram impedidos de acessar um sistema que dá acesso a notas, tarefas e horário de aulas porque não pagaram uma “taxa” de R$ 60.Um estudante, de 17 anos, aluno da 3ª série do Ensino Médio na unidade contou que tentou acessar o sistema em julho, mas estava com a conta bloqueada. Além disso, foi comunicado que também não poderia mais se consultar com a psicóloga da escola. Tudo isso porque não estava contribuindo mensalmente com a associação. “Disseram que seria injusto com os que pagam”, afirma.O aluno, que tem cardiopatia, perdeu a mãe em 2020 e atualmente mora sozinho. Ele estuda de manhã e trabalha à tarde e à noite para se sustentar.Nesta quinta-feira (11), ele recebeu a notícia de que o acesso de todos os alunos da instituição no sistema foi liberado. O Comando de Ensino confirmou a informação e comunicou que dentro das condições da associação em questão houve o entendimento de que o sistema assistirá a todos os alunos.“Mesmo assim eu sinto vergonha. Sinto como se as pessoas me olhassem diferente. A escola devia ser um lugar onde não houvesse distinção entre o que tem e o que não tem. Já chegaram a mandar um boleto para o meu avô com minhas contribuições atrasadas. Só consegui me matricular este ano porque minha tia e uma advogada ligaram lá”, desabafa.A reportagem conversou com outros estudantes de colégios militares, que preferiram não se identificar, e todos disseram que se sentem pressionados para fazer o pagamento da contribuição. Dois deles estudam em Goiânia, em uma unidade no Jardim Goiás, e pagam a taxa. “A gente paga porque fica muito chato se não pagar. Eles pegam no pé para a gente contribuir. Ai nossa mãe prefere assim”, diz um deles, de 16 anos. Uma outra estudante, de 15 anos, está matriculada em uma unidade de Anápolis e conta que, mesmo tendo condições financeiras, opta por não fazer o pagamento. “Não acho certo. A escola é pública.”O CEPM diz que as contribuições para as associações não são obrigatórias e que a plataforma GR8, sistema ao qual Davi estava privado de acesso, é fornecida pela APMF, que “é de cunho privado e trabalha no sentido de apoiar a escola militar”. O Comando destacou ainda que não há prejuízo nenhum ao ensino do aluno que não tem acesso à plataforma, pois existe acompanhamento presencial e individual dos alunos.O comandante do CEPM, tenente-coronel Luciano Magalhães, informou à reportagem que a quantidade de alunos que contribuem com as associações varia muito. De acordo com ele, na média, entre 40% e 50% dos pais contribuem.Magalhães argumenta que toda a arrecadação tem retorno direto para os alunos por de melhorias na qualidade do ensino como, por exemplo, o oferecimento de aulas de reforço, cursinhos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e aulas de esportes variados no contraturno.Outra atividade que seria feita pelas associações é o fornecimento de uniformes para os alunos que não têm condições de adquiri-los devido ao alto custo da farda escolar exigida pelos colégios militares. “No meu caso, a escola sabe da minha condição e isso nunca me foi oferecido. Quem pagou pelo meu uniforme foi minha tia. Nunca vi nenhum aluno ganhar uniforme. Eles até indicam qual é a loja lá no centro da cidade que temos que ir para comprar. Ainda temos que ter o uniforme completo. Se faltar um item, você não entra na escola e perde a aula”, relata o estudante de Goianira.Legalidade Entretanto, o ouvidor geral da Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás (OAB Goiás), Marcos César Gonçalves, afirma que se o intuito das associações é prestar serviços para os estudantes, especialmente aqueles mais vulneráveis, não existe justificativa para promover uma diferenciação entre eles. “Esse sistema e todas as outras atividades oferecidas devem ser acessíveis a todos os alunos, independentemente de pagamento, ou ele é ilegal”, pontua o especialista.O advogado ressalta que essa prática fere o princípio constitucional da igualdade. “Essa conduta é uma espécie de discriminação, pois trata de modo diferente (ter ou não acesso ao sistema) pessoas que são iguais (alunos de escola pública). Esse acesso restrito (como é o caso do sistema GR8) acaba sendo também uma forma de coação moral para que os estudantes contribuam”, frisa.Para Gonçalves, essa conduta se enquadra no artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que diz que é crime “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento” e também se configura como crime contra a administração pública, expresso no artigo 316 do Código Penal, que diz que “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida.” MP e Conselho se dizem impotentesO controle das atividades desenvolvidas pelas Associações de Pais, Mestres e Funcionários (APMF) dos colégios militares de Goiás é complexo. De acordo com o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), não é possível cobrar que as associações ofereçam serviços para pessoas que não são associadas. Da mesma forma, o Conselho Estadual de Educação (CEE) afirma que o funcionamento das APMF não é de sua competência. A promotora de Justiça Maria Bernadete Crispim, que atua em Goiânia, conta que recebeu reclamações parecidas com as que foram feitas pelos estudantes do Colégio Estadual da Polícia Militar José Silva Oliveira, em Goianira, e entrou em contato com o Comando de Ensino da Polícia Militar de Goiás (CEPM). “O que eles me informaram foi que a plataforma GR8 é apenas um complemento e que os alunos que não são associados não sofrem com falta de nenhum conteúdo ou informação”, diz a promotora. De acordo com ela, como a ferramenta é da associação, não é possível cobrar que o serviço fique disponível para não associados.A promotora destaca ainda que existe uma sentença do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) sobre o assunto. O documento, que transitou em julgada em 2017, considera “ilegal e abusiva” cobrança de qualquer taxa de matrícula ou mensalidade “de forma camuflada, por meio das denominadas ‘contribuições voluntárias’.”“Temos reuniões periódicas com o Comando do Ensino e nós sempre repassamos esse documento. O comandante havia me dito que até cartazes iam colocar nas escolas para poder destacar que a contribuição não era obrigatória”, esclarece Maria Bernadete. O presidente do Conselho Estado de Educação (CEE), Flávio de Castro, explica que a instituição não tem competência para ditar sobre o funcionamento dessas instituições. “As associações não estão vinculadas diretamente com os colégios. Nosso trabalho acontece junto as escolas. O que verificamos é se a instituição está prestando todos os serviços que foram descritos na proposta pedagógica.”Castro diz que caso as escolas não estejam cumprindo essa proposta, elas podem sofrer punições. “Nós temos que analisar caso a caso, verificando se aquele serviço está descrito na proposta daquela escola. Caso seja constatado que o aluno está sendo privado de alguma coisa, a escola sofre sanções. Por isso, nós pedimos que qualquer estudante ou pai que esteja se sentido prejudicado procure o CEE para que possamos fazer o acompanhamento da questão”, afirma o presidente.