SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - A influência secular do cristianismo e uma série de coincidências históricas acabaram transformando o bacalhau no prato tradicional da Sexta-Feira Santa no Brasil -ainda que, à primeira vista, não pareça haver relação nenhuma entre o peixe do Atlântico Norte e a narrativa bíblica da crucificação de Jesus.Durante sua pregação pelas cidadezinhas da Galileia e em Jerusalém, Jesus de Nazaré se notabilizou por criticar o jejum ostensivo praticado por alguns de seus conterrâneos judeus.Frequentava festas, convivia com membros de todas as camadas da sociedade, inclusive com membros de grupos marginalizados, como prostitutas e cobradores de impostos. Por isso, seus adversários o chamavam de "comilão e beberrão", segundo os Evangelhos. Jesus não se incomodava com a ironia, mas, de acordo com os evangelistas, teria alertado seus discípulos de que, quando perdessem a companhia dele, aí sim começariam a jejuar (uma premonição de sua morte na cruz, de acordo com a crença cristã primitiva).De fato, após a morte de Jesus, as comunidades cristãs que foram se espalhando pelo Mediterrâneo retomaram hábitos mais ascéticos, semelhantes aos de algumas correntes do judaísmo e também de certos filósofos pagãos da época.Havia entre essas comunidades o hábito de jejuar, sobretudo nas sextas-feiras, por ser o dia em que Cristo tinha sido crucificado, e também o de se abster do consumo de carne de forma parcial ou mesmo total.No caso da carne de animais domésticos, isso era estimulado também pelo fato de que animais como bois, ovelhas e vacas costumavam ser sacrificados aos deuses pagãos, que os primeiros cristãos classificavam como demônios. Era comum que as carnes dos animais sacrificados nos templos fossem, depois, comercializadas normalmente nas cidades do Império Romano.Por isso, a impressão de algumas pessoas do mundo antigo é que os primeiros cristãos fossem vegetarianos, diz Dale Martin, professor emérito de Novo Testamento e Origens Cristãs na Universidade Yale (EUA), já que os cristãos queriam evitar o risco de se alimentar de carnes "pagãs".Os peixes, por não serem oferecidos como sacrifício a essas divindades, escapavam da desconfiança cristã em relação ao consumo de carne de mamíferos e aves.Quando o cristianismo se tornou a religião dominante do Império Romano a partir do século 4º d.C., a preocupação com a pureza ritual da carne desapareceu. Por outro lado, as práticas ascéticas se tornaram mais codificadas, bem como os dias santos, entre eles a Quaresma (período que recorda o jejum de Jesus no deserto, narrado nos Evangelhos), a Semana Santa e a celebração da Páscoa. No final da Antiguidade e começo da Idade Média, a prática lembrava, em certos aspectos, a do Ramadã entre os muçulmanos: esperava-se que o fiel consumisse apenas água durante o dia e comesse uma refeição muito modesta à noite.Nesse período, tanto a carne de mamíferos e aves quanto os laticínios não deviam ser consumidos, enquanto o peixe, com moderação, era permitido. No entanto, ao longo dos séculos, conforme a Igreja Católica espalhava sua influência para o Novo Mundo, a definição do que exatamente contava como "peixe" se tornou relativamente flexível, levando em conta as culturas locais e características peculiares dos animais consumidos.Nas colônias francesas da América do Norte, por exemplo, a partir do século 17, tanto os castores das áreas mais frias quanto os jacarés dos pântanos perto de Nova Orleans passaram a ser permitidos, por serem animais semiaquáticos. O mesmo ocorreu com a carne de capivara durante a colonização espanhola da Venezuela.No caso brasileiro, a influência dos colonizadores portugueses, que já eram grandes consumidores e pescadores de bacalhau desde os primeiros séculos da Era das Navegações, começou a trazer o peixe para as mesas do país. Isso se intensificou no século 19, com uma crescente eficiência na captura da espécie e nos métodos de preservação e armazenamento do pescado.A predileção pelo bacalhau tem pressionado as populações da espécie, que perderam grande parte de sua abundância em regiões como o noroeste do Atlântico a partir do final do século 20.