Geral

Venezuelanos se adaptam à nova vida em Goiás

Wildes Barbosa
Nixi Angelis Bush Flores e sete dos oito filhos, além da mãe dela, Yuliert Esperanza. Mulher cuida das crianças e faz bicos como manicure

De janeiro a março deste ano, mais de 51 mil venezuelanos entraram no Brasil por Pacaraima (RR), município mais próximo da fronteira com o país vizinho. Identificada pela Operação Acolhida, do governo federal, a movimentação é 64,3% maior do que no mesmo período de 2022, indicando uma nova onda migratória forçada pela fome. Estima-se que mais de 6 milhões de pessoas deixaram a Venezuela desde que a crise econômica começou, em 2013. Em Goiás, pelo menos 4 mil deles estão espalhados por 93 municípios.

A grande maioria desses novos “goianos” não se arrependeu de ter feito a travessia. Em 2015, Wesley Eversley, 26 anos, chegou em Boa Vista com a mulher, Dailis, 26. A estada na capital de Roraima foi difícil. O casal não ficou nas ruas, mas fazia bicos e ocupava uma casa com outras 20 pessoas. A vinda para Goiânia, em 2019, foi por intermédio de um obreiro de uma igreja evangélica, Odair Carvalho, que ficou condoído com a situação dos venezuelanos depois de visitar Boa Vista duas vezes. 

Wesley e Dailis nunca deixaram de trabalhar. Ele chegou a montar uma barbearia, mas foi obrigado a fechar o negócio na pandemia da Covid-19. Hoje, com dois outros conterrâneos, Carlos e José, trabalha numa empresa do mesmo segmento. A vida melhorou tanto que o casal trouxe os pais, uma irmã, sobrinho e aqui teve um filho, agora com três meses. “Sou muito feliz aqui. As pessoas são receptivas, ajudam e sempre dizem uma palavra de ânimo para você ir para a frente. Não penso em voltar para a Venezuela.”

Em 2018, Odair Carvalho atuava na Igreja Assembléia de Deus, no Jardim Caravelas, em Goiânia, quando decidiu encampar uma ação para trazer 17 famílias de venezuelanos que viviam em situação de penúria nas ruas de Boa Vista. Além da passagem, a instituição ofereceu aluguel e alimentação por seis meses para o grupo. “Eu olho para trás e vejo que valeu muito a pena. Eles estão vivendo muito melhor do que na Venezuela. Muitos abriram negócios próprios e trouxeram suas famílias. Tenho ouvido boas histórias”, contou ele.  O Jardim Caravelas é um dos bairros de Goiânia com maior concentração de venezuelanos, cerca de 400.

O engenheiro civil Carlos Marcano, 33 anos, chegou a morar no bairro, mas com a vida entrando nos eixos, se mudou com a família para o Jardim Buriti Sereno, em Aparecida de Goiânia. As filhas, hoje com idades entre 10 e 7 anos, motivaram a saída da Venezuela em 2017. “Eu queria um futuro melhor para elas, por isso saí do país. A família veio para Goiânia em 2019 através de Odair que deu emprego para Carlos em sua empresa, mas hoje ele possui o próprio negócio, uma empresa de reformas, e a mulher, Lauris, gerencia três lojas de roupas no Setor Garavelo.  

“O povo daqui é muito acolhedor. Estamos felizes. Minhas filhas gostam mais de pamonha do que de arepa”, relata rindo, sobre o prato típico da Venezuela, também à base de milho. Carlos não trabalha como engenheiro no Brasil, mas tenta uma conexão universitária para conseguir o título e Lauris é estudante de Administração de Empresas. Na instituição religiosa onde atua como pastor, ele ajuda compatriotas. “Eles continuam chegando e muitos têm dificuldades com o idioma.” Carlos planeja escrever um livro para contar tudo o que viveu em Boa Vista. “Vi muita coisa triste no auge da migração.” 

Osceia já atendeu mais de 200 famílias de venezuelanos 

As condições subumanas em que viviam milhares de venezuelanos nas ruas de Boa Vista sensibilizaram Rosana Maria Ferreira Borges que visitou a  cidade em fevereiro de 2019. Presidente do Centro Espírita Irmão Áureo, no Jardim Nova Esperança, ela atendeu o apelo do padre jesuíta Antônio Ronilson Braga de Souza, uma referência entre os venezuelanos na capital de Roraima, e decidiu liderar um projeto para trazer 26 famílias para Goiás que envolveu o governo federal, àquela altura já interiorizando os migrantes. 

Em novembro de 2019, numa ação capitaneada pela instituição Obras Sociais do Centro Espírita Irmão Áureo (Osceia), as 26 famílias chegaram em Goiás. O grupo foi levado para Brasília num avião da Força Aérea Brasileira e de lá veio de ônibus para Goiânia. Aqui, as  famílias assinaram um documento se comprometendo a não mendigar e nem usar substâncias entorpecentes. Em troca receberam moradia e alimentação durante três meses até que fossem encaminhadas para o mercado de trabalho. 

Kellys Yailett Maestre Sánchez, 38, e seu casal de filhos, Jesus, 15, e Génesis, 7, estavam no grupo. Administradora de empresas em seu país e divorciada há três anos, Kellys sentiu o drama de ser uma mãe sozinha em Boa Vista. “Fiquei na rua, sem dinheiro. As pessoas não me davam emprego. O padre Ronilson me ajudou muito.” Luzia Martins, assistente social da Osceia, nunca se esqueceu da reação da venezuelana quando comunicou a ela o único emprego que tinha a oferecer, em serviços gerais. “Ela nem pensou, disse sim na hora.”

Mesmo graduada, Kellys não perdeu a oportunidade. “Eu nunca tinha trabalhado fazendo limpeza, mas essa minha ‘formatura’ no Brasil foi maravilhosa”, conta ela. Pela dedicação e disciplina, na mesma empresa ela subiu degraus funcionais, passando para auxiliar e assistente administrativa. “Foi uma experiência muito rápida. Acho que a imagem que eu passei foi de uma mãe que não tem tempo para chorar, mas que levanta a cabeça e segue em frente.” Hoje, Kellys trabalha na parte administrativa de uma concessionária de veículos. 

A assistente social Luzia Martins explica que pelo projeto 10 famílias foram tutoradas por instituições parceiras e 16 ficaram com a Osceia. Ela estima, entretanto, que além daquele período, mais de 200 famílias de venezuelanos já foram atendidas na instituição, cerca de 600 pessoas. “Nesses quatro anos vivemos de tudo um pouco. Todos aqueles que recebemos foram encaminhados para o mercado de trabalho. Alguns não se adaptaram no primeiro emprego, outros continuam na mesma empresa e até resgatamos alguns que foram explorados num clube de pesca.”

Luzia Martins relata que a mudança brusca é impactante, principalmente para os jovens e as crianças. Ela sente isso no cotidiano na Osceia que não conta com profissionais de Psicologia em número suficiente para prestar atendimento. “Precisamos muito de voluntários. Estamos com adolescentes e crianças com pensamentos suicidas”. Ela atribui o impacto emocional à falta de adaptação dos mais jovens a um novo país. “Eles não encaixam, até porque muitas pessoas da nossa sociedade não aceitam a presença deles.”   

‘Não vim aqui para atrapalhar ninguém’

Oneida Jimenez, 37, e o marido Amado Baez, 29, deixaram a Venezuela buscando melhores condições de vida para o casal de filhos, Maria Alejandra, 20, e César Leonardo, 13. Encontraram no Brasil. “Somos gratos à Osceia que nos ajudou muito. Saímos do projeto antes dos três meses pelo nosso trabalho”, relata Oneida, que é graduada em Ciências Contábeis em seu país. Aqui, o marido, ex-militar de aviação, trabalha como mecânico de máquina pesada e ela é operadora de caixa em um supermercado. “Não temos nada a reclamar”, diz Oneida, que recebeu o irmão e já o encaminhou para o mercado de trabalho. 

“Não vim aqui para atrapalhar ninguém. Sempre falo para outros venezuelanos: ‘se for para depender dos outros, é melhor ficar na sua terra’”, afirma Oneida. Ela comemora as conquistas familiares em quatro anos vivendo na capital goiana. “Juntamos dinheiro, demos entrada num apartamento, minha filha está na faculdade de Direito e faz estágio no Tribunal de Justiça, meu filho estuda numa escola de tempo integral e faz parte da banda de música. Não pensamos em voltar para a Venezuela, só quero ter a oportunidade de ver meu pai, que está idoso, pelo menos uma vez.”

Quando desembarcou em Goiânia em novembro de 2019, Nixi Angelis Bush Flores, 36, e Danny Adonay Lezama Ramos, 41, chamaram a atenção pelo tamanho da prole. O casal atravessou a fronteira com sete filhos, com idades entre 17 anos e três meses. Aqui ela teve outro bebê, agora com três meses. A vida não tem sido fácil, mas o casal nem sonha em pegar o caminho de volta. “Meus filhos estudam e estamos construindo nossa casa”. Com toda a dificuldade financeira, porque só Danny trabalha enquanto Nixi cuida das crianças, o casal conseguiu comprar um lote na periferia de Goianira.  

Luzia Martins, da Osceia, está impressionada com o esforço do casal. “Os dois estão fazendo a casa para fugir mais rápido do aluguel, por isso faltam coisas básicas como roupas e até corte de cabelo, mas a família precisa muito nesse momento é de material de construção. Nixi relata que ela e o marido trabalham na obra nos finais de semana, até uma hora da manhã. Ela faz alguns bicos como manicure e aproveita um curso gratuito de costura, oferecido numa igreja perto de casa, pensando numa profissão à frente.

Crises e conflitos armados levam às consequências humanitárias

Este mês, durante a Semana Nacional de Discussões sobre Migração, Refúgio e Apatridia, um relatório apresentado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBmigra), em parceria com a Coordenação do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), revelou que os venezuelanos continuam entrando no Brasil em grande número. Dos 50.355 pedidos de refúgio em 2022, 67% partiram de nascidos no país vizinho. As solicitações apresentadas por pessoas de 139 nacionalidades, representam 73% a mais do que os pedidos registrados em 2021 (29.107).

O OBmigra, que nasceu em 2013 a partir de uma parceria do governo federal com a Universidade de Brasília (UnB), informou ainda que dos pedidos analisados, 5.795 pessoas tiveram a condição de refugiadas reconhecida no Brasil em 2022, sendo a maioria venezuelanas (77,9%). Durante o evento, o ministro interino das Relações Exteriores, Carlos Duarte, disse que o momento atual é marcado pela “multiplicação de crises e conflitos armados antigos e novos, com gravíssimas consequências humanitárias”, forçando deslocamentos forçados sem precedentes.

Em Pacaraima, segundo observadores, a crise humanitária está acentuada com muitos imigrantes vivendo nas ruas. E nessa nova onda migratória, estão cruzando a fronteira mais crianças desacompanhadas, idosos e doentes. Um voluntário da Operação Acolhida, enviou um áudio ao presidente da Osceia, Jânio Borges Santos, relatando o que tem acompanhado. “Pelos dados oficiais, estão chegando 2 mil venezuelanos por dia em Roraima. A primeira triagem é feita em Pacaraima, onde apresentam documentação, tomam vacinas e fazem exames, depois são encaminhados para abrigos, mas nem todos fazem esse caminho e ficam nas ruas. A xenofobia é muito grande. O povo de Roraima não suporta mais.”

Venezuelanos já são 450 mil no Brasil 

O governo federal estima que mais de 450 mil venezuelanos estejam vivendo no Brasil, onde encontram assistência emergencial, proteção, documentação e acesso a novas oportunidades. Mais de 100 mil deles foram realocados de Roraima para o interior do país através da Operação Acolhida, criada em 2018 como estratégia de enfrentamento do cenário de vulnerabilidade em Boa Vista e Pacaraima. Até agora, as cidades que mais receberam venezuelanos, segundo o Ministério da Justiça, foram Curitiba (PR), São Paulo (SP), Chapecó (SC), Dourados (MS) e Manaus (AM). 

Dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds) mostram que 3.989 venezuelanos (1.724 famílias) vivem em Goiás, inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal. A pasta faz encaminhamentos para o mercado de trabalho, para aulas de Português, para preparação de documentos  e para cursos de capacitação. Este mês, a Seds realizou na Assembleia Legislativa o seminário Migrantes em Goiás com o objetivo de debater a situação e o acolhimento dos estrangeiros em território goiano. 

Wesley Costa
Kellys com o casal de filhos, Jesus e Génesis: “Fiquei na rua, sem dinheiro. As pessoas não me davam emprego”
Comentários
Os comentários publicados aqui não representam a opinião do jornal e são de total responsabilidade de seus autores.
ANUNCIE AQUI