Data que lembra a causa tem HGG levando o Estado a liderar cirurgias de redesignação sexual, mas revela população ainda alvo de violência e preconceito no País
Aos 50 anos, a costureira Érica Monteiro acaba de passar por uma cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG), unidade da Secretaria Estadual de Saúde (SES), localizada em Goiânia. "Estou muito feliz em realizar esse sonho", disse ela ao POPULAR. O procedimento encorpa as estatísticas que entre os anos de 2023 e 2024 colocaram Goiás como o Estado que mais realizou cirurgias do tipo no País. A informação do DataSUS é motivo de comemoração para o Serviço de Identidade de Gênero, Transexualidade e Desvios da Diferenciação Sexual (Ambulatório TX), do HGG, no Dia Nacional da Visibilidade Trans, lembrado nesta quarta-feira (29).
A partir das 9h30, no Auditório Luiz Rassi, 5º andar do HGG, gestores do Instituto de Desenvolvimento Tecnológico e Humano (Idtech), à frente da gestão da unidade hospitalar, representantes da SES-GO, profissionais do Ambulatório TX e pacientes vão mostrar por que hoje Goiás é líder em cirurgias de redesignação sexual, com 26 procedimentos nos dois últimos anos, à frente de Rio de Janeiro (17) e Rio Grande do Sul (10), e anunciar novos serviços. Também conhecida como cirurgia genital afirmativa de gênero, o procedimento adequa os órgãos sexuais do indivíduo ao gênero com que ele se identifica. O Processo Transexualizador foi instituído no SUS em 2008, dentro da Política Nacional de Saúde Integral LGBTI do Ministério da Saúde.
Goiás foi o segundo Estado brasileiro, depois do Rio Grande do Sul, a implantar um programa de transexualidade. Foi em 1999 que a ginecologista e obstetra Mariluza Terra, a partir de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) dois anos antes, autorizando o procedimento, passou a receber pacientes no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mariluza morreu em 2019 e o Projeto Transexualidade continuou funcionando com profissionais voluntários até 2022. Em mais de duas décadas, foram realizadas no HC mais de 80 cirurgias de redesignação sexual. Barrados pela falta de estrutura, os pacientes do HC que aguardavam na fila para cirurgias foram absorvidos pelo HGG, que em 2017 criou o serviço para oferecer acompanhamento médico e multiprofissional a transexuais, travestis e outras identidades de gênero, o Ambulatório TX.
A tocantinense Érica Monteiro entrou no HC em 2017 e foi transferida para o HGG. Ainda internada, ela revela que enfrentou resistência de amigos e familiares por insistir em fazer o procedimento aos 50 anos. "Muita gente me disse que não valia a pena e a minha resposta sempre foi a mesma: se eu viver um dia em conformidade com o que sou, já valeu a pena." Érica sofreu preconceitos nos 25 anos em que atuou como cabeleireira. "Quando comecei o processo de transição, enfrentei transfobia, por isso hoje trabalho como costureira." O acadêmico de Estatística, Lucas Araújo, 22, fez mastectomia no HGG em junho do ano passado. "Estou superfeliz. Meus seios me incomodavam muito", diz o jovem, que está vibrando com a notícia de que o Ambulatório TX vai distribuir hormônios para os pacientes. "Com o uso do hormônio, que não é barato, passei a ser reconhecido pelo meu gênero."
Coordenador do Ambulatório TX, o obstetra e ginecologista João Lino não tem dúvidas de que atualmente Goiás possui o mais estruturado serviço de transexualidade do País. "O serviço cresceu muito, em número de usuários, de atendimentos e de possibilidades, como a inclusão de novos procedimentos cirúrgicos. A grande conquista é o caráter formador, que também visa replicar as cirurgias em outras partes do País." A primeira turma, formada por quatro médicos -- dois de Goiânia, um de Belo Horizonte (MG) e um de Campinas (SP) --, começou o curso em outubro do ano passado. "Sempre quis formar outros profissionais para retirar a pessoalidade do serviço, para que ele não sofra descontinuidade", explica Lino.
Nesta quarta-feira (29), a SES vai anunciar que, além do atendimento ambulatorial à população trans nas Policlínicas de Senador Canedo e Itumbiara, o serviço será levado também para unidades de Formosa, Goianésia, São Luís dos Montes Belos e Quirinópolis. "A ideia é que o atendimento fique mais perto do paciente e ela só venha para Goiânia para o procedimento cirúrgico", explica João Lino. O HGG também vai iniciar a dispensa de medicamentos para hormonioterapia, uma antiga reivindicação da comunidade trans. Por causa do custo, é comum o uso de hormônios por conta própria, gerando uma série de complicações de saúde. A terapia de readequação vocal é outra melhoria do serviço. Por meio de um software, a voz do paciente será reproduzida e fonoaudiólogos poderão criar exercícios para adequar a voz ao gênero.
Fila de espera foi reduzida no último ano
A enfermeira Lorena Brito, 33, nunca teve dúvidas sobre sua condição de gênero e foi acolhida desde sempre pelas duas irmãs e pela mãe. Quando chegou a Goiânia, em 2017, vindo de Marabá (PA), procurou o HC/UFG e de lá foi para o HGG, mas a pandemia atrasou seus planos. Em 2022, conseguiu fazer a cirurgia de redesignação sexual e desde então já colocou prótese nos seios e realizou a tireoplastia, uma espécie de raspagem do pomo-de-adão. "Foi a melhor decisão da minha vida e graças a Deus consegui fazer tudo pelo SUS", afirma. Lorena, enquanto se preparava para o procedimento cirúrgico, se graduou e hoje atua em vários hospitais por uma cooperativa. "Não sinto preconceito. Minha mãe sempre dizia que, independente de qualquer coisa, somente o estudo poderia fazer diferença na minha vida."
Lorena é grata pelo que recebeu no Ambulatório TX. "É muito importante o acompanhamento. Os profissionais são capacitados para nos orientar." O médico João Lino explica que há um processo que o paciente precisa seguir. Depois de procurar uma unidade da rede básica (postinho), ele será encaminhado para o Ambulatório TX e precisa pegar uma fila de espera que é coordenada pelo serviço de regulação da SES. Em 2023 havia 480 pessoas na fila, mas no último dia de 2024 esse número caiu para 280. Somente após dois anos de atendimento psicoterápico, o candidato à cirurgia poderá ser submetido ao procedimento. "A estruturação da rede tem melhorado muito", comemora João Lino. Atualmente, pelo menos 18 pessoas atuam no Ambulatório TX, entre médicos de várias especialidades, psicólogos e fonoaudiólogos. Desde 2017, foram realizados 15.511 atendimentos, 4.034 somente em 2024.
País segue líder de mortes de trans
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) reafirma neste 29 de janeiro que pessoas trans continuam a enfrentar uma realidade alarmante no Brasil, marcada pela violência e exclusão. O dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras 2024, divulgado há pouco pela Rede Trans, mostra que pelo 16º ano consecutivo, o país lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans e travestis no mundo.
Dos 105 homicídios registrados no ano passado, a maioria ocorreu no Nordeste (40), seguido pelas regiões Sudeste (35), Centro-Oeste (14), Norte (10), Sul (5) e Distrito Federal (1). A expectativa de vida dessa população é de apenas 35 anos, bem menor do que o restante dos brasileiros -- 73,1 anos (homens) e 79,7 anos (mulheres).
Os dez Estados que mais registraram assassinatos da população trans em 2024 foram São Paulo (16), Minas Gerais (12), Ceará (11), Rio de Janeiro (10), Bahia (8), Mato Grosso (8), Pernambuco (8), Alagoas (6), Maranhão (5) e Pará (5). Conforme a Rede Trans, 68% dos casos ocorreram em cidades do interior. Nesse ranking, Goiás ocupa o 16º lugar, com dois assassinatos.