LEONARDO SANCHEZRuazinhas apertadas passeiam por predinhos antigos, alguns literalmente caindo aos pedaços, no que parece um túnel do tempo. No fundo daquela vila cercada por cancelas e portões, Abadiânia, município de 20 mil habitantes no interior de Goiás, foi recriada em plena capital paulista, no fim do ano passado.Localizada na zona leste de São Paulo, a antiga vila operária Maria Zélia reflete o senso de isolamento e desconexão com a realidade que cercava a cidadezinha goiana. Por isso, foi o cenário perfeito para as gravações da série João sem Deus - A Queda de Abadiânia.Foi em meio à ausência do poder público e a muito misticismo, afinal, que o médium manteve centenas de abusos sexuais em sigilo por décadas. Agora condenado, por esses e outros delitos que reforçavam o coronelismo que regia Abadiânia, João Teixeira de Faria é mais uma vez execrado na praça pública do audiovisual.A série, que estreou no Canal Brasil e no Globoplay, retoma o frenesi midiático que rondou o caso quando os crimes vieram à tona, em dezembro de 2018. Rememora também a dupla de documentários que ajudaram o público a ter dimensão da rede de abusos que era a Casa de Dom Inácio de Loyola, sede das bênçãos e cirurgias espirituais do médium e também de seus crimes - Em Nome de Deus, do Globoplay, e João de Deus: Cura e Crime, da Netflix.Mas a série que sai agora se distância dessas produções e das muitas reportagens que inundaram o noticiário televisivo ao escolher a ficção como ferramenta. Dirigidos por Marina Person, os episódios dão ênfase a três vítimas imaginárias, mas baseadas num trio de perfis observados entre as mais de 300 mulheres que foram abusadas.Interpretada por Bianca Comparato, Carmen trabalha na Casa de Dom Inácio e se mantém fiel ao médium quando os casos começam a aparecer. Maria Clara Strambi vive a sua filha, Ariane, que passa por um processo até assimilar o que sofreu. E Cecília, personagem de Karine Teles, sabe desde o princípio que foi abusada, mas se cala até ser encorajada por uma amiga.“Não é uma biografia do João de Deus, que dá visibilidade à trajetória dele. Ela pode até ser interessante, mas isso não me interessava contar”, diz Person. “Ainda assim fiquei cheia de dúvida ao aceitar o projeto, porque é difícil lidar com as dores de pessoas reais. Foi preciso muito cuidado. Na primeira leitura que fizemos, todas as mulheres na sala relataram ter vivido casos de abuso, então falamos de uma realidade que está na nossa cara.”Para Person, era essencial que a trama fosse contada por mulheres, e foi por isso que ela deixou os postos de comando de sua equipe em mãos femininas. Outro cuidado que teve foi o de não julgar a fé daqueles que teriam sido curados ou ajudados por João de Deus, uma crença que, para muitos, nem seus crimes conseguiram abalar.“Quando os casos vieram à tona, fiquei atônita, passada, triste, porque era um lugar que fazia bem para as pessoas. Eu fui para Abadiânia como acompanhante uma vez, e eram centenas meditando, numa corrente. É inegável que isso tem algum efeito. Eu não sou totalmente cética, mas não consigo me entregar totalmente. Agora, o sagrado de cada um é sagrado, e nós respeitamos isso.”Apesar da trama ser centrada no trio feminino, um homem deve roubar a cena pelo assombro que vai causar no público - que o guarda num lugar especial, quase paternal, em boa parte graças à longevidade de A Grande Família. Marco Nanini foi escolhido para viver João de Deus, numa performance que disseca, aos poucos, a monstruosidade e o descontrole do médium.Durante as gravações, os cabelos brancos lambidos para trás, tão desprovidos de cor quanto as vestimentas, davam tom de divindade e capturavam a atenção enquanto Nanini deslizava pelo enorme galpão transformado em templo na Vila Zélia, em meio a retratos de Jesus Cristo e decorações de Natal.“Para aqueles que têm fé, nenhuma explicação é necessária. Para os que não têm, nenhuma explicação é possível”, lia-se num letreiro no centro do altar, de onde o ator benzia uma fila de pessoas. Na cena seguinte, Nanini empunhava uma tesoura para cavocar o nariz de uma figurante, num momento incomodamente visual sobre as cirurgias que supostamente livravam os seguidores de tumores e outras mazelas.“Foi um desafio, mas o convite da Marina veio de forma muito gentil. Eu não podia rejeitar”, diz Nanini. “Eu não queria imitar o João de Deus nem fazer juízo sobre ele. Queria um personagem como outro qualquer. Mas eu sentia emoções estranhas, porque havia cenas complicadas de fazer, como cenas de estupro. Eu fazia e ficava chocado, claro, mas não queria passar esse julgamento para o meu trabalho.”O set repleto de mulheres, afirma o ator, foi importante para que o clima fosse o mais leve que o tema permitia que todos os envolvidos se sentissem seguros ao interpretar a história. “Foi uma surpresa agradável, porque eu nunca tinha visto uma equipe assim. Aliviou o peso do trabalho”, diz Nanini, assimilando do alto de seus 60 anos de carreira não só uma nova era do audiovisual, mas do mundo como um todo, como o derretimento da figura de João de Deus atesta.