Rede estadual só tem 10 leitos intensivos em hospital que faz esse tipo de cirurgia
Os bebês com cardiopatias congênitas -- ou seja, com anormalidades na função ou estrutura do coração -- que nascem em Goiás sofrem com a demora para acessar cirurgias cardíacas. Na última segunda-feira (27), Samuel Belém Moura, de apenas 47 dias de vida, morreu à espera de uma operação corretiva. Miguel Pereira da Silva, de 2 meses e 22 dias, está em uma UTI de um hospital privado desde que nasceu, enquanto aguarda uma vaga em um leito especializado para depois entrar na fila de espera pelo procedimento cirúrgico.
Samuel sofria com uma malformação no septo do coração. Miguel tem o mesmo problema. A condição só pode ser corrigida por meio de cirurgia que, dependendo da condição do bebê, tem indicação para acontecer nas primeiras semanas de vida ou então entre o terceiro e o sexto mês de idade. Em Goiás, apenas uma unidade de saúde faz esse tipo de operação pelo Sistema Único de Saúde (SUS): o Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), em Goiânia. Entretanto, a unidade conta só com dez leitos de UTI especializados para atender todo o Estado. De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO), atualmente 50 crianças esperam pelo procedimento.
Em Goiás, o serviço especializado para operar crianças cardiopatas foi criado em 2020. Em 2022, foi definido o fluxo de atendimento atual. Os que precisam de cirurgia imediata são prontamente levados para o Hugol. No caso daqueles que podem aguardar pelo procedimento, os recém-nascidos (até 28 dias de vida) são acompanhados ambulatorialmente no Hospital Estadual da Mulher (Hemu) e aqueles com idade superior vão para o Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad).
A artesã Miriam Bernardes Belém, de 40 anos, mora em Goiânia e, em 2024, engravidou do terceiro filho. Apesar de algumas complicações no início da gestão, a gravidez da mulher seguiu de forma tranquila. Durante o pré-natal, feito na rede municipal de Saúde de Goiânia, ela não conseguiu fazer o exame de ecocardiograma fetal. Quando Samuel nasceu, na Maternidade Maria da Cruz Gomes Santana, em Aparecida de Goiânia, foi descoberto que o bebê tinha síndrome de Down e uma cardiopatia chamada defeito do septo átrio ventricular total, conhecida pela sigla DSAVT.
Então, ele foi encaminhado para uma UTI da unidade e Miriam foi informada de que Samuel precisava de uma cirurgia corretiva. Segundo ela, depois disso foi solicitada a transferência do bebê para o Hemu. Depois que ele completou 28 dias de vida, passaram a pedir um leito para o Hecad. "Eu fui pessoalmente na Secretaria de Saúde (de Goiás) e algumas vezes no Ministério Público", conta. A vaga no Hecad só saiu na sexta-feira (24), 44 dias após a data em que ele nasceu. Três dias depois de chegar ao hospital especializado, Samuel morreu. "Falaram que foi sepse, o problema cardíaco dele e uma infecção aguda nos rins", explica Miriam.
A artesã, que é mãe de uma jovem, de 20 anos, e de um adolescente, de 12, e o marido, Ercísio Oliveira Moura, de 46 anos, enterraram Samuel nesta terça-feira (28). "Eu estou com o coração sangrando. Indignada com essa situação. Gritei por socorro e não fui atendida. Meu filho sofreu uma negligência, uma injustiça. Ele era tão lindo", desabafa Miriam em meio às lágrimas e abraçada às roupas de Samuel que foram compradas e nunca usadas.
Em nota, a SES-GO disse que o sistema de regulação estadual só recebeu o pedido de vaga especializada para Samuel na quinta-feira (23), sendo que o leito foi cedido no dia seguinte. A pasta lamentou a perda do paciente, disse que ele recebeu todo o tratamento necessário e ressaltou que "as programações cirúrgicas nem sempre podem ser realizadas em determinadas condições clínicas, cabendo aos médicos as decisões sobre o processo assistencial e medidas necessárias durante a internação e tratamento dos pacientes, conforme estabilidade clínica e evolução." A versão da SES-GO diverge da apresentada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Aparecida de Goiânia, que afirma que o leito especializado foi solicitado em 30 de dezembro de 2024.
Miguel
Outra mãe vive um drama semelhante ao de Miriam. A dona de casa Lucenília Pereira Cardoso, de 32 anos, saiu de Monte Alegre de Goiás, cidade a cerca de 570 quilômetros de Goiânia, para ter o filho, Miguel, no Hemu. De acordo com ela, assim que o bebê nasceu, em 8 de janeiro de 2024, ele foi transferido para o Hospital Jacob Facuri. Miguel possui a mesma cardiopatia de Samuel e, de acordo com a mãe, aguarda uma vaga no Hecad.
Enquanto a vaga especializada não sai, Lucenília está em Goiânia, hospedada na casa da irmã, e visita Miguel quando consegue pagar a viagem via transporte de aplicativo. Em casa, ela deixou outros cinco filhos, que têm idades entre 3 e 16 anos. "Eu me preocupo com ele não conseguir a cirurgia e também com meus outros filhos. Meu marido parou de trabalhar para cuidar deles enquanto eu estou aqui. Como vamos sustentá-los assim? Somos fracos de situação", desabafa. Ela conta que procurou o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), mas até agora não conseguiu uma solução via órgão ministerial.
De acordo com a SES-GO, não há, neste momento, nenhum pedido de vaga da Central de Regulação de Goiânia, responsável pelos leitos SUS do Hospital Jacob Facuri, para a secretaria. Questionada sobre o assunto, a SMS de Goiânia contra-argumentou e esclareceu que realizou solicitação de transferência do paciente para UTI pediátrica com suporte de cardiopediatria. A pasta ainda comunicou que a regulação estadual pediu ao município atualização do caso e envio de informações sobre o paciente, demanda que foi repassada ao Jacob Facuri.
Já o MP-GO comunicou que a família entrou em contato com o órgão ministerial no dia 15 de janeiro deste ano e, na mesma data, foi impetrado um mandado de segurança no Juizado da Infância e Juventude em favor do bebê, sendo que a Justiça concedeu uma liminar no mesmo dia, dando prazo de 48 horas para que fosse providenciada a UTI pediátrica solicitada. Diante do não cumprimento no prazo, o MP-GO entrou em contato com a mãe do bebê para que fosse apresentado um orçamento do custo da UTI que Miguel precisa visando garantir o bloqueio de valores para atendimento da medida, mas até o momento ela não havia dado retorno ao órgão ministerial.
Cirurgias têm janela de oportunidade
Apesar de existir uma classificação de risco que precisa ser respeitada, dando prioridade para os casos mais graves, as cirurgias de pacientes com cardiopatia congênita precisam ocorrer dentro de uma janela de oportunidade para que tenham bons resultados. "Antes de qualquer coisa, é preciso ressaltar a importância do diagnóstico precoce", pondera Mirna de Sousa, cardiopediatra e diretora da Sociedade Goiana de Pediatria (SGP).
Depois do diagnóstico, é necessário que o tratamento adequado seja feito no tempo certo. Nesse sentido, Mirna destaca que as cardiopatias se dividem, principalmente, em dois grupos. O primeiro causa uma sobrecarga do pulmão, o que ocasiona uma hipertensão pulmonar. "Se eu ultrapasso (o tempo adequado para a cirurgia), essa hipertensão pode se tornar definitiva", pontua. O segundo grupo causa uma baixa oxigenação no coração. "Quando isso se prolonga, ocorre o comprometimento de cérebro, rins, entre outros órgãos", explica.
A presidente da Associação Amigos do Coração, Martha Camargo, esclarece que, antes de crianças cardiopatas acessarem as cirurgias, o ideal é que elas fiquem internadas em UTIs especiais, que disponham de suporte de ecocardiograma e monitoramento de cardiopediatras, o que, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de Goiás, só é realizado nas três unidades de referência: Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), Hospital Estadual da Mulher (Hemu) e Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad).
Martha avalia que, em Goiás, o problema no atendimento às crianças cardiopatas já começa quando elas tentam marcar consultas ambulatoriais no Hecad e não conseguem ou demoram até meses para acessar o serviço. "Após isso, enfrentam outra fila para conseguir uma UTI adequada e, depois, fazer a cirurgia. É vergonhoso que um Estado como Goiás, que investe tanto em outras áreas, tenha só dez leitos para operar crianças com cardiopatias", comenta.
Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO) informou que, atualmente, o Estado dispõe de toda a assistência necessária às crianças que necessitam de intervenção cirúrgica pediátrica e que a pasta tem trabalhado para ampliar o serviço, sendo que, de 2020 para cá, já houve um aumento no número de cirurgias cardiopediátricas realizadas. A pasta ainda detalhou que não existem pacientes aguardando consultas na especialidade, "uma vez que todas as solicitações pendentes foram agendadas para a próxima semana no Hecad".