A quantidade de ocorrências de trânsito envolvendo motociclistas em Goiás voltou a crescer depois de uma leve redução em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19. Em 2022, foi registrada uma média de 73 ocorrências por dia, maior número dos últimos quatro anos. Motociclistas que se envolveram em acidentes no último ano relataram que as sensações de perigo iminente e risco de vida são uma constante entre os condutores. Nos últimos quatro anos, 71,4 mil motocicletas foram incluídas na frota de veículos em Goiás, que atualmente possui 651,2 mil motocicletas, sendo que 847,7 mil estão em atividade. Um dos veículos que engrossava esse número era o de Leomar de Freitas, de 53 anos, que se acidentou em julho de 2022 e não pretende voltar a pilotar uma motocicleta. “Traumatizei com moto. Eu quase morri”, lembra.O acidente de Leomar aconteceu às 5 horas da manhã, em uma avenida próxima ao Residencial Granville, em Goiânia, quando ele estava indo trabalhar. “Eu mexia com pães e bolos e, por isso, precisava chegar muito cedo. Já tinha passado outros apuros por conta de motoristas bêbados nesse horário, principalmente nos finais de semana. Entretanto, dessa vez não consegui escapar”, conta.Leomar bateu de frente com um carro que entrou na contramão da via em que ele circulava. “Do outro lado da pista vinha um ônibus. Tive que escolher entre bater de frente com um ou com o outro”, diz. O motorista do carro fugiu e Leomar contou com a ajuda de trabalhadores de locais próximos para chamar o socorro. Ele foi levado para o Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), onde ficou internado por 21 dias.O homem, que foi submetido a três cirurgias diferentes, fraturou o quadril e as duas pernas. Leomar quase perdeu a vida. Em 2022, outras 591 pessoas não tiveram a mesma sorte que ele e morreram em acidentes e outros crimes de trânsito envolvendo motocicletas em Goiás, uma média de 1,5 óbitos por dia. Em 2023, já foram 49 registros do tipo.A auxiliar administrativa Thalia Moura, de 22 anos, também se acidentou de moto quando estava indo trabalhar, na região dos Jardins Madri, em agosto de 2022. Devido ao forte sol, o marido dela, que conduzia a motocicleta, não viu uma caçamba de lixo que estava mal posicionada na rua e acabou batendo de frente com ela.Na sequência, uma moto que vinha logo atrás deles também se envolveu no acidente. “Fui levada às pressas para o Hospital de Urgências de Goiás (Hugo). Tive uma fratura exposta grave no tornozelo. Meu marido também fraturou o braço e o joelho. Depois disso, confesso que apesar de termos arrumado nossa moto, não a usamos mais.”O motoboy Joel Maciel, de 30 anos, sofreu um acidente na Avenida Rio Verde, em novembro de 2022. “Eu fui avisar um motorista de um carro que a porta dele estava aberta e quando olhei para a frente não deu mais tempo. Bati na traseira de um caminhão”, relata. Joel, que foi levado para o Hugo, teve diversas fraturas no braço e na perna direita, que quase precisou ser amputada. “Fiquei internado do dia 28 de novembro de 2022 até o dia 9 de janeiro deste ano”, diz.Todos os três entrevistados pela reportagem ainda estão se recuperando dos ferimentos que sofreram nos acidentes. Thalia ainda faz o uso de uma bota ortopédica, frequenta consultas e vai iniciar a fisioterapia. “O médico disse que minha lesão foi muito complexa”, explica. Leomar ainda usa uma cadeira de rodas para se locomover. “Recentemente, comecei a fazer o uso de um andador para algumas coisas, mas tenho muitas dores”, enfatiza o homem.Apesar de já ter sido submetido a um procedimento cirúrgico, Joel precisará passar por um outra cirurgia para fazer a substituição de pinos na perna e para reconstruir um tendão, além de também precisar fazer fisioterapia. “O prognóstico de recuperação total é para daqui a mais de um ano. Perdi um pouco da sensibilidade na perna”, afirma.Os três acidentados ainda não voltaram a trabalhar. Joel e Leomar contam com a ajuda de familiares para se manter financeiramente. “A parte mais difícil para mim é ter que ficar dependendo dos outros. Apesar do que aconteceu comigo, não fiquei traumatizado. Quero melhorar logo para voltar a trabalhar”, relata Joel.Leomar também anseia por uma recuperação completa. Ele cuida e sustenta sozinho três filhas, todas com menos de 12 anos. “Uma delas não conseguiu vaga em um Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) e fica o dia todo comigo. É difícil, pois tenho que lavar roupa, fazer comida e todo o resto na cadeira de rodas. Já gastei mais de R$ 1 mil com remédios e ainda não tenho condições de arcar com uma fisioterapia. Mesmo assim, com fé em Deus conseguirei voltar a andar.”Como motoboy, Joel afirma que já sofreu outros pequenos acidentes de trânsito, muitos deles fruto da disputa por espaço de carros e motocicletas. “Espero que quando eu retornar ao trabalho, o trânsito seja um local mais seguro para os motociclistas”, aponta. Thalia acredita que uma melhora na sinalização também iria ajudar os condutores. “No caso do meu acidente, se tivesse alguma coisa ali sinalizando a presença da caçamba, a gente não teria se machucado.”Como evitar acidentes provocados por chuvaApesar de a maioria dos acidentes de trânsito envolvendo motocicletas serem causados por imprudência, ocorrências envolvendo chuvas, que em grande volume podem arrastar as motocicletas e os condutores, podem ser evitados. É o que afirma Miguel Pricinorte, geógrafo e coordenador técnico do Mova-se Nacional de Mobilidade. “É possível, mas é necessário planejamento”, pontua.No dia 30 de janeiro deste ano, quando fortes chuvas atingiram Goiânia, o motociclista Warley Melo Adorno, de 22 anos, morreu depois de ser arrastado por uma enxurrada na Avenida C-107, no Jardim América. Imagens feitas por populares mostraram o jovem pouco tempo antes de ser levado pela força da água e cair no Córrego Cascavel. Casos semelhantes ocorreram com outros motociclistas em 2018 e 2016.No dia 1º de fevereiro, um grupo de motociclistas foi às ruas de Goiânia, em um ato pacífico, para cobrar justiça pela morte de Warley. Segundo o grupo, o ato buscou cobrar por melhorias das ruas da capital goiana. “A prefeitura estava ciente dos riscos”, escrevia um dos cartazes. Na ocasião, a Secretaria da Infraestrutura (Seinfra) e a Defesa Civil informaram que o recomendado é que pedestres e motociclistas evitem transitar em pontos de captação da água da chuva para evitar acidentes e que iriam reforçar a sinalização sobre o risco de alagamento na via onde Warley foi arrastado. Pricinorte esclarece que a prevenção desse tipo de situação começa pela análise desses pontos e dos arredores, com o desenvolvimento de um planejamento adequado para a coleta das águas pluviais. O especialista destaca que também é preciso traçar estratégias para que os locais de escoamento d’água tenham proteções. “Um acidente como esse poderia ser evitado se a saída da água estivesse melhor protegida de alguma forma, mas não necessariamente impedindo a passagem da água. Existem, por exemplo, proteções que se assemelham a gaiolas. Elas evitam objetos grandes de seguirem, sem impedir a passagem da água”, explica. Pricinorte destaca ainda que uma manutenção na limpeza das vias, bueiros e galerias é de extrema importância para evitar acidentes deste tipo. “Cada caso é um caso, mas o que se pode perceber pelos últimos episódios é que boa parte do viário nas marginais não suportou o volume de água e inundou alguns trechos. O que pode ter explicações também na falta de limpeza (retirada de lixo) do fundo do canal.”Clima é de disputa constante e medoO representante dos profissionais por aplicativo em Goiânia, Miguel Veloso, conta que os motociclistas que trabalham com aplicativos de delivery e transporte de passageiros na capital vivem um clima de constante disputa com carros e medo de se envolverem em acidentes de trânsito. “Não se passa uma semana sem que recebamos alguma notícia de um acidentado”, conta. Veloso relata que a frequência dos acidentes fez com que os condutores que trabalham com motocicletas em Goiânia se organizassem em cerca de 40 grupos para prestarem apoio financeiro para os acidentados. “Como os aplicativos não possuem vínculos empregatícios, quem não trabalha, não ganha. Quando tem alguma indenização, eles demoram a receber.”Segundo ele, os motociclistas que trabalham com delivery estão sempre com pressa, pois não podem atrasar as entregas. A mesma lógica vale para aqueles que transportam passageiros. “É claro que tem alguns que cometem imprudências, mas a verdade é que os motoristas de carro também não tomam cuidado. Fechar uma motocicleta em um corredor é coisa corriqueira.”O geógrafo e coordenador técnico do Mova-se Nacional de Mobilidade, Miguel Pricinorte, explica que é justamente esse sentimento de pressa, comum a todos os condutores, que gera essa disputa por espaço entre os carros e as motocicletas. “Um exemplo claro disso são as pessoas que ficam mudando de faixa o tempo todo para tentar andar mais rápido. Em uma boa parte dos casos, isso resulta em um acidente.”Veloso afirma que, em relação ao poder público, as reivindicações dos condutores que possuem as motocicletas como instrumento de trabalho giram em torno da melhora das sinalizações e da criação de espaços exclusivos para a circulação de motocicletas nas vias. “Pontos de descanso para que eles possam se alimentar, descansar e carregar os celulares também seriam importantes.”Em relação aos aplicativos, Veloso diz que um aumento no valor que é pago por quilômetro rodado contribuiria para que os motociclistas não se sobrecarregassem na quantidade de viagens que fazem por dia. “Existem entregas de delivery em que o motociclista recebe apenas R$ 3,50. É muito pouco”, finaliza.Maioria dos pacientes são graves e estão em idade ativaA maioria dos pacientes que a urgência e emergência do Hospital de Urgências de Goiás (Hugo) recebe são vítimas de acidentes envolvendo motocicletas. De acordo com Roberto Jacob, diretor clínico do hospital, essas pessoas costumam chegar com quadros graves de politrauma. “Pode ser que o paciente esteja só com uma fratura de fêmur ou tíbia, por exemplo, mas sempre temos que investigar”, diz. O primeiro atendimento é feito por um cirurgião e uma grande parte dos pacientes precisam ficar internados e serem submetidos a procedimentos cirúrgicos. “A maioria deles são homens que estão na idade ativa, trabalhadores. Uma grande parte chega com fraturas nos membros inferiores e superiores e precisam ser encaminhados para ortopedistas”, explica Jacob.Em 2018, a maior parte das pessoas que morreram em acidentes de trânsito eram condutores de motocicletas. A maioria era homens com idade entre 18 e 40 anos. No Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação (Crer), o perfil de uma grande parcela dos pacientes que foram vítimas de acidentes envolvendo motocicletas também é esse.Fisioterapeuta da instituição, Gleyce Kelly de Sousa relata que atender condutores de motocicletas que foram lesionados faz parte da rotina da unidade. Segundo ela, a maioria deles chegam com lesões na medula e quadros de paraplegia ou tetraplegia. “Um dos nossos maiores desafios é justamente esse: auxiliar pessoas pacientes jovens e ativos a aceitar o fato de que agora eles têm limitações.”Segundo Gleyce Kelly, o processo de reabilitação costuma ser longo e não há garantias de que os pacientes voltem a andar. “Dependendo de cada perfil, o paciente pode ficar internado ou então receber atendimento ambulatorial. De qualquer maneira, o tratamento dura em torno de seis meses. Já a reabilitação dos movimentos depende muito da extensão das lesões.”O tripé do caminho para a proteçãoEspecialistas apontam que a maneira mais eficaz de aumentar a proteção dos motociclistas é desenvolver ações para melhorar a engenharia das vias, promover ações educativas e fiscalizar o trânsito. “É necessário atuar nas três frentes. Uma não funciona sem a outra”, explica Miguel Pricinorte, geógrafo e coordenador técnico do Mova-se Nacional de Mobilidade.Pricinorte esclarece que do ponto de vista da engenharia, a implantação de estratégias como o motobox, que já funciona em algumas vias de Goiânia, ajuda a evitar acidentes no momento da saída dos semáforos. “Também evita colisões entre pedestres e motociclistas, pois eles conseguem enxergar um ao outro de maneira mais clara.”O especialista conta ainda que também existem outras possibilidades, como a criação de um corredor exclusivo para motociclistas nas vias. “São Paulo implementou essa estratégia. Lá eles chamam de ‘faixa azul’ e aproveitam o espaço entre os carros que já era usado pelos motociclistas. Até o momento, a experiência tem sido positiva.”Em relação à educação, o coordenador da Escola Pública de Trânsito, do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran Goiás), Rogério Silva, destaca que uma das premissas do Código de Trânsito Brasileiro é de que “os maiores protejam os menores” e isso precisa ser colocado em prática. “Respeitar as regras do código resulta na proteção de todos os envolvidos nessa dinâmica.”Além disso, Silva pontua que também é importante que os motociclistas entendam que acabam sendo os atores mais frágeis em um possível acidente de trânsito. “Assim, eles precisavam praticar uma direção defensiva, pois são os mais vulneráveis. O transporte de crianças com menos de 10 anos em motocicletas, por exemplo, pode facilmente matá-las em um acidente.”O gerente de Educação para o Trânsito da Secretaria de Mobilidade (SMM) de Goiânia, Horácio Ferreira, esclarece que a pasta atua em intervenções ligadas à engenharia, mas também desenvolve um trabalho educacional. “Fazemos palestras nas escolas, em empresas e também campanhas periódicas nas ruas.”No que diz respeito à fiscalização, Ferreira relata que a ampliação da malha de monitoramento eletrônico é feita justamente para reforçar esse trabalho. “O intuito não é autuar o condutor para arrecadar dinheiro. A intenção é fazer com que a presença do monitoramento iniba ele de cometer infrações.”-Imagem (Image_1.2613237)-Imagem (1.2613249)