Elas fazem coro contra a alta rotatividade de profissionais em unidades próprias e a dificuldade de conseguir com que os planos terapêuticos indicados sejam cumpridos

Redatora publicitária Aline Alves com seu filho Valentin, de 7 anos: muita luta para que o menino consiga acessar todos os atendimentos prescritos para o transtorno do espectro autista (Diomício Gomes / O Popular)
Uma via-crúcis. Essa é a definição dada pelas mães de crianças autistas que dependem de planos de saúde para conseguir atendimento adequado para os filhos em Goiás. As reclamações giram em torno, principalmente, da alta rotatividade de profissionais em unidades próprias e da dificuldade em fazer com que os planos terapêuticos indicados pelos médicos sejam cumpridos. Além da frustração e do impacto financeiro da manutenção dos planos no orçamento familiar, mães temem que a situação atravanque o desenvolvimento dos filhos.
Em junho de 2022, uma resolução normativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regulamenta os planos de saúde, determinou a obrigatoriedade da cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico assistente para o tratamento de autistas. A normativa também garantiu sessões ilimitadas com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas. Três meses depois, o governo federal sancionou a lei que derrubou o chamado "rol taxativo" para a cobertura de planos de saúde. O texto determina que a lista de procedimentos de saúde elaborada pela ANS é meramente exemplificativa, ou seja, os planos de saúde devem cobrir tratamentos ausentes do rol.
Mesmo com a legislação vigente, famílias de crianças autistas ainda encontram desafios para acessar tratamentos. No dia 12 de fevereiro deste ano, por exemplo, a Justiça concedeu uma liminar, após provocação do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), para determinar à Unimed Goiânia a adoção de medidas para garantir o atendimento a pacientes com transtorno do espectro autista (TEA) na capital. Por meio de uma junta médica, a cooperativa estava fazendo uma reanálise das terapias prescritas pelo médico assistente .
A primeira experiência da redatora publicitária Aline Alves, de 38 anos, com a Unimed Goiânia ocorreu em 2021 e foi exitosa. Na época, ela fez um plano de saúde para o filho, Valentin, que hoje tem 7 anos. Por meio das terapias, ele saiu do nível 2 para o nível 1 de suporte. Por conta de uma mudança de país, Aline precisou encerrar o contrato com o plano de saúde. Em 2023, quando voltou ao Brasil, só conseguiu um novo plano para Valentin que contasse com coparticipação. Das cinco horas diárias de terapias recomendadas, a família só consegue arcar com os custos de três horas semanais. "Atualmente, gastamos mais ou menos R$ 1,5 mil por mês com plano de saúde para ele. São terapias, consultas e exames", detalha.
Aline conta que pretende entrar com uma ação na Justiça para tentar fazer com que Valentin consiga fazer todos os atendimentos prescritos. Além de uma coparticipação que pesa no bolso, impedindo que o filho faça todas as terapias, Aline também aponta outros gargalos no atendimento prestado pela Unimed Goiânia, em especial no Espaço Bem-Te-Vi, unidade dedicada aos pacientes com TEA. "Muita rotatividade de profissionais. Além disso, passam planos terapêuticos equivocados", explica. O POPULAR ouviu outras duas mães com a mesma reclamação. "É muito doloroso, custoso e prejudicial. Nossos filhos não têm tempo a perder", comenta Aline.
Lorrana dos Santos Costa, de 35 anos, também reclama da alta rotatividade de profissionais na Hapvida, que oferece quase todos os atendimentos em unidades próprias. Assim como Aline, ela enfrenta problemas com a carga horária das terapias. Atualmente, a recomendação é de que o filho dela, Wesley Lorenzo, de 6 anos, faça 12 horas por semana de terapia, mas ele só consegue fazer 5h30. Segundo Lorrana, quando ela questiona os atendentes do plano sobre o assunto, a justificativa dada por eles é de que a demanda pelas terapias é alta. A situação é fonte de preocupação constante para Lorrana. "Ele já chegou ao nível 2 de suporte. Se hoje ele está em uma sala da rede municipal de educação sem professor de apoio, é por causa das terapias", pontua.
A dificuldade em acessar terapias fez com que a pediatra e presidente da Associação de Familiares e Amigos do Autismo de Goiás (Afaag), Alessandra Jacob, fundasse o Instituto Sarah Jacob em 2023. O local, que oferece terapia ABA (sigla para applied behavior analysis", ou "análise do comportamento aplicada", em português), leva o nome da filha de Alessandra, que hoje tem 17 anos. Até 2017, a médica pagou por conta própria as terapias da Sarah. Depois, acionou o Serviço Social Autônomo de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos e Militares do Estado de Goiás (Ipasgo) judicialmente para que o plano pagasse pelos atendimentos e obteve sucesso.
Em 2023, o plano de saúde quis que Sarah passasse a ser atendida em alguma das unidades credenciadas do serviço. Entretanto, Alessandra explica que a rede credenciada do plano não estava preparada pra casos mais graves e ainda mais sendo adolescente e, naquela ocasião, não abrangia o local onde a filha já fazia acompanhamento com profissionais que já conhecem as particularidades dela. Depois de um acordo, as profissionais que atendem Sarah foram credenciadas junto ao Ipasgo e Alessandra passou a pagar uma coparticipação no atendimento da filha. Uma rede credenciada pequena também foi motivo de reclamação de outras mães que usam o Ipasgo e foram ouvidas pela reportagem. Como médica, Alessandra destaca a ligação das terapias com a qualidade de vida das crianças autistas. "A terapia muda totalmente a criança. Não fazer pode levá-las à estaca zero", finaliza.
Planos alegam cumprir as regras
Os planos de saúde que atendem autistas em Goiás afirmam que estão comprometidos em cumprir as normas estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em nota, a Unimed Goiânia comunicou que "segue firme no compromisso de proporcionar um atendimento de qualidade, garantindo a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar e respeitando integralmente as regulamentações estabelecidas pelas autoridades competentes".
Com relação ao Espaço Bem-Te-Vi, a Unimed explicou que a unidade "oferece um cuidado integral e individualizado, reunindo todas as especialidades necessárias para um tratamento eficaz e humanizado" e que "o centro mantém um compromisso contínuo com a capacitação, promovendo treinamentos semanais que garantem que os profissionais estejam sempre atualizados com as melhores práticas e protocolos internacionais, assegurando um atendimento digno, seguro e baseado em evidências científicas", sendo que conta com um corpo clínico multidisciplinar composto por mais de dez médicos especializados e também promove o acolhimento das famílias.
Já a Hapvida informou que, como operadora, "reafirma seu compromisso com a saúde e o bem-estar de seus beneficiários e informa que não há fila de espera para atendimento especializado em TEA", reforçando que "cada paciente tem um plano terapêutico individualizado e que a conduta médica é um princípio fundamental na prática da medicina e livre exercício da profissão".
A respeito do caso de Wesley Lorenzo, de 6 anos, a operadora esclareceu que a criança "tem mais de 30 sessões de terapia agendadas em diversas especialidades, mas que tem tentado contato com a responsável para entender se há alguma pendência". A Hapvida ainda disse que "está à disposição dos responsáveis para prestar todo apoio e esclarecimentos necessários".
O Serviço Social Autônomo de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos e Militares do Estado de Goiás (Ipasgo) apontou que, desde 2023, aumentou em 293% a rede credenciada voltada ao atendimento de beneficiários autistas e que, atualmente, 55 clínicas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros profissionais especializados atendem essa parcela de beneficiários. Sobre o caso de Sarah Jacob, de 17 anos, o Ipasgo afirmou que ela tem acesso a 36 sessões por semana de diversas terapias, com atendimento até mesmo em modalidades que não integram o rol de cobertura da instituição.
O Ipasgo pontuou ainda que "permanece empenhado em mapear as necessidades dos beneficiários e traçar estratégias para atendê-las, tanto no que diz respeito à ampliação da rede, quanto à otimização do atendimento, sempre com a missão de proporcionar suporte integral, acessível e de alta qualidade".

Advogada Letícia Amaral: “Direitos dos autistas são constantemente violados” ( Fábio Lima / O Popular)
Associação de goianas atua na defesa de direitos
Desde 2022, um grupo organizado de goianas luta pelos direitos das crianças autistas. A Associação das Mães em Movimento pelo Autismo de Goiás (MMA) foi responsável por procurar o Ministério Público de Goiás (MP-GO) para denunciar que a Unimed Goiânia estava, desde outubro de 2024, notificando pais de crianças autistas para que elas passassem por uma junta médica a fim de reavaliar as terapias prescritas pelo médico assistente.
"Começaram a chegar muitos pedidos de socorro. A junta era composta por médicos escolhidos por eles e que não avaliavam as crianças presencialmente", conta Letícia Amaral, advogada e presidente da MMA. Segundo ela, na prática, várias crianças estavam tendo o tempo de terapia reduzido pela junta médica. Após provocação do MP-GO, a Justiça concedeu liminar a fim de que a Unimed Goiânia garanta o atendimento do público.
Membro da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPCD) da Ordem dos Advogados Brasil - Seção Goiás (OAB-GO) e mãe atípica, Ana Cárita Paes Leme explica que os planos de saúde podem promover auditorias, desde que respeitem os direitos dos usuários. "Totalmente arbitrária", comenta sobre a junta médica formada pela Unimed Goiânia.
Questionada sobre o assunto, em nota, a cooperativa comunicou que as questões relacionadas ao processo judicial serão tratadas exclusivamente nos autos e reforçou que atua "em total conformidade com a legislação do setor, prezando pela qualidade do serviço prestado e sustentabilidade do mercado de saúde suplementar".
A presidente da MMA explica que situações como essa levaram à criação da associação. "Os direitos dos autistas são constantemente violados", diz Letícia, que aponta que as violações não são recentes. Em 2023, por exemplo, o MP-GO conseguiu outra liminar na Justiça obrigando a Unimed Goiânia e Hapvida a atenderem, em prazos não superiores a 15 dias, pedidos de procedimentos, consultas, exames, terapias e/ou tratamentos de saúde prescritos às pessoas com transtorno do espectro autista (TEA). Esta ação está em fase final de tramitação na Justiça.
Terapia
O neuropediatra Hélio van der Linden explica que as terapias são importantes para o desenvolvimento das crianças autistas e que elas são individualizadas, com intervenções dependendo de cada caso clínico. "Não existe receita de bolo", frisa. A mais utilizada é a terapia applied behavior analysis (ABA) -- análise do comportamento aplicada, em português. "É a que funciona com mais certeza, com evidências científicas bastante sólidas", destaca.
Segundo ele, a definição da carga horária e da abordagem é feita depois que a criança passa por uma avaliação multiprofissional. "É uma avaliação muito detalhada, com vários testes, para saber onde que a criança está se posicionando em determinadas áreas do desenvolvimento", discorre. O resultado dessa análise pauta o plano de intervenção. Nesse sentido, Van der Linden reforça que não adianta a criança ter uma carga horária elevada de terapias e fazer muitas modalidades diferentes se o processo não for realizado com qualidade.