Suspensão de produção de radiofármacos afeta pacientes de câncer
Após ataque cibernético, produção e fornecimento de radiofármacos foram interrompidos temporariamente. Ao menos 800 pessoas em Goiás foram prejudicadas
Gabriella Braga
5 de abril de 2025 às 07:29

Gama-câmara, para cintilografia, fica sem uso por falta de insumos (Ana Beatriz Teixeira)
A suspensão na produção de radiofármacos acarretada por uma tentativa de ataque cibernético ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), autarquia gerida pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), tem impactado ao menos 800 pacientes em tratamento de câncer ou em espera para realização de exames diagnósticos ou de acompanhamento em Goiás. Com a fabricação interrompida no fim de março e a previsão de retomada somente para o fim da próxima semana, o sofrimento tem sido frequente para parte dos afetados.
As tentativas de ataque à rede do instituto ocorreram na sexta-feira (28) e foram divulgadas pela Cnen dois dias depois, quando foi informada a suspensão temporária na produção e no fornecimento dos radiofármacos. Na ocasião, foi informado que "a segurança física, radiológica e nuclear não foram afetadas", mas, para preservar o sistema, "foi necessário desconectar a rede do instituto do ambiente externo". Dentre os radiofármacos que tiveram a fabricação e distribuição afetadas estão aqueles chamados de meia-vida superior a duas horas, tais como o iodo-131, lutécio-177, tálio-201, Guan-IPEN-131, gerador de tecnécio-99m e citrato de gálio-67.
Esses radiofármacos, que têm a produção e distribuição sob monopólio do governo federal, são utilizados para tratamento do câncer de tireoide (iodo-131), de tumores neuroendócrinos no pâncreas e trato gastrointestinal (lutécio-177), em exames chamados de cintilografias miocárdicas para avaliar fluxo sanguíneo do coração (tálio-201), na localização de tumores neuroendócrinos (guan-IPEN-131), em exames de imagem para condições diversas (gerador de tecnécio-99m), e em cintilografias para detectar inflamações, infecções e determinados tipos de câncer, tais com os linfomas (citrato de gálio-67).
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Vice-presidente da Associação Nacional de Empresas de Medicina Nuclear (Anaemn), Ana Beatriz Teixeira cita a estimativa de 800 pacientes impactados em Goiás, além de 38 mil em todo o Brasil. "E são pacientes, na sua maioria, que tem diagnóstico ou suspeita de doenças cardiovasculares ou de câncer. Alguns pacientes, como os que seriam submetidos a radioiodoterapia, têm de fazer um preparo que dura várias semanas. Imagine como é difícil, de última hora, termos de cancelar esses atendimentos. E não há nada a fazer, não existe substituto possível para esses insumos. Cada exame cancelado, cada agenda suspensa, representa angústia para quem espera por um diagnóstico ou um tratamento", comenta.
No caso da cintilografia, a exemplo, um exame que está suspenso pela falta dos radiofármacos, a indicação é para pacientes que aguardam diagnóstico ou em que estão em tratamento para uma série de enfermidades, tais como doença arterial coronariana (infarto e angina), câncer disseminado para os ossos, embolia pulmonar, problemas renais e tireoidianos (nódulos, câncer, hiper e hipotireoidismo e tireoidite, além de problemas gastroesofágicos, infecção nos órgãos e doenças metabólicas que afetam o esqueleto. "Além dos exames, também fazemos tratamento com materiais radioativos, incluindo vários tipos de câncer, como o de tireoide, próstata e neuroendócrinos e outras condições, como o hipertireoidismo. Boa parte dos procedimentos está impossibilitada nesse momento", pondera Ana Beatriz.
Impacto
Em tratamento para um câncer de tireoide diagnosticado há cerca de quatro meses, Maria Santana de Souza, de 74 anos, é uma das pacientes afetadas em Goiás. Moradora de Porangatu, veio à capital goiana para iniciar a iodoterapia, mas foi surpreendida na quarta-feira (2) com a notícia de que o procedimento estava suspenso pela falta de insumo. Ela conta que a restrição alimentar imposta, além da retirada do medicamento Puran T4, utilizado para suprir deficiência do hormônio no organismo, tem causado fraqueza e acentuado o refluxo gastroesofágico. Por conta disso, também não tem conseguido seguir com uma boa alimentação, ocasionando ainda hipoglicemia.
"Estou aqui, não sei se morro ou se consigo continuar a vida. Só sei que a parada está me causando muito mal. Não tenho mais condição de ficar sem (o medicamento), mas também não posso usar porque tenho que fazer a iodoterapia. Está me deixando mal, enfraquecida, não estou conseguindo. Não consigo sequer sair do quarto para ir à cozinha sozinha, estou totalmente dependente. Só espero que resolvam, não só para mim, mas para todos os que precisam. Sempre trabalhei com muito esforço e não gostaria de passar por isso bem no fim da vida", lamenta a idosa.
Responsável pelo tratamento de cerca de 75 mil pacientes por ano, a maior parte oriunda do Sistema Único de Saúde (SUS), o Hospital de Câncer Araújo Jorge disse, em nota, que a suspensão na produção e distribuição de radiofármacos "poderá impactar alguns atendimentos realizados na unidade, especialmente no que diz respeito a exames específicos voltados ao diagnóstico de tumores e ao tratamento de câncer de tireoide". Contudo, acrescenta, ainda não foi estimado "com precisão o alcance desse impacto" e a situação segue sendo monitorada.
Também em nota, a Cnen diz que a estimativa é de retomada na produção dos insumos na próxima semana, sendo que o impacto alcança de 5 a 7 mil pacientes por dia, em todo o País. No final da tarde desta sexta-feira (4), o órgão público federal divulgou uma nota dizendo que "até o momento, a maior parte das ações previstas no plano de religamento foi concluída com sucesso". "O término das etapas seguintes está previsto para o dia 7 de abril, na próxima segunda-feira. A partir dessa data, a estimativa é que a produção de radiofármacos e radioisótopos seja retomada na quinta-feira (10)", complementa.
Ainda não foi informado o motivo da tentativa de ataque cibernético. "Entendemos que os diagnósticos já realizados e em curso pela Cnen, somados às investigações que deverão ser realizadas pelos órgãos competentes, permitirão apurar essa questão com a devida responsabilidade. No entanto, diante do diagnóstico já elaborado, que segue sob restrição, pode-se inferir que o ataque foi altamente sofisticado, organizado e utilizou diversas técnicas avançadas para ultrapassar as defesas de segurança estabelecidas. O evento não se trata de um incidente trivial e, por isso, está recebendo grau máximo de prioridade em sua tratativa", disse o órgão, em nota feita na terça-feira (1º).
O presidente da Cnen, Francisco Rondinelli Júnior, explicou, em entrevista ao UOL, que o prejuízo estimado é de R$ 3 milhões, já que os insumos base da produção desses radiofármacos são importados. Ele menciona que a produção dos medicamentos é semanal, haja vista que possuem baixa durabilidade devido ao "decaimento radioativo".