Pirenepolinos denunciam intervenção não autorizada em imagem tombada pelo Iphan, que teve rosto modificado. Autarquia vai requisitar perícia para apurar caso
Moradores de Pirenópolis denunciam que a Nossa Senhora das Dores, que integra o acervo tombado da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, foi descaracterizada após sofrer uma intervenção não autorizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A descoberta da alteração na originalidade da obra bicentenária, ocorrida na última sexta-feira (4), foi feita por fiéis que frequentavam o local. Desde então, mais de 20 queixas foram feitas à autarquia, que cobrou resposta da Diocese de Anápolis, responsável pelo templo.
Construída há quase três séculos, a Igreja Matriz de Pirenópolis e todo o seu acervo foram tombados como patrimônio nacional em 1941. Situada na Praça da Matriz, no centro histórico, a igreja é tida como cartão postal do município e palco de celebrações religiosas tradicionais, como a Festa do Divino Espírito Santo e a Semana Santa. Durante as festividades da semana, a imagem de Nossa Senhora das Dores, construída em madeira, é levada às procissões. Diante de toda a relevância à comunidade católica, não foi difícil para fiéis identificarem alterações na escultura.
Presidente da Comissão Pirenepolina de Folclore, Séfora Pina explica que a santa esteve "sumida" por cerca de um mês e reapareceu na última semana, quando um integrante Irmandade do Santíssimo Sacramento teria observado tais mudanças. "A pele dela parecia uma louça de tão limpa. Fizeram cílios, mudaram a sobrancelha, parecia até uma harmonização facial. Todos os fiéis estão indignados. Mexeram nela inteira, não é pouca coisa que fizeram. Tirou toda a característica da imagem. Todo o acervo é patrimônio, ninguém pode botar a mão assim, tinha que ser algum especialista", lamenta.
Ainda na sexta-feira, foi à igreja e registrou, em fotos, o que foi alterado. E em imagens comparativas, as diferenças são destacadas. Na obra original, havia lágrimas vermelhas, ou seja, de sangue, haja vista que a santa representa as dores de Maria quando o filho, Jesus, foi crucificado. Agora, as lágrimas são transparente e, à distância, praticamente imperceptíveis. A sobrancelha antes mais fina foi engrossada, e os cílios -- que não existiam -- foram pintados. Até mesmo a boca tem um tom mais forte, e a santa, agora, tem as bochechas coradas. "A madeira dos pés também está toda cheia de tinta", acrescenta, ao citar ainda, uma nova posição das mãos entrelaçadas.
Advogado e membro da comissão, Adriano Dourado reforça que a imagem reapareceu "totalmente descaracterizada". "Parece que fizeram uma limpeza na imagem. Ela tinha uma variação na tonalidade de cor de pele, pois a pele não é a mesma cor, sempre tem um lado mais escuro, uma mancha, e tinha essas imperfeições na pele. Agora não, está parecendo uma folha de papel. E as lágrimas vermelhas desapareceram e fizeram transparentes, como se fosse uma pedra clara. Contornaram os olhos, fizeram a sobrancelha, puseram ruge nas bochechas, passaram batom. Tem gente até duvidando que é a mesma santa. Isso é um absurdo. É um caso de polícia", pontua.
Conforme Dourado, há, ali, o crime de dano ao patrimônio histórico. "A gente mantém tanto séculos o patrimônio, e do nada vem alguém, 'imperito' (e faz isso). E o que muda? Muda a expressão dos olhos triste dela, por exemplo, mexe com o lúdico. Está uma revolta geral, só estão querendo saber quem foi o artista que tocou na imagem. Por enquanto está todo mundo calado. É uma revolta muito grande, porque a Nossa Senhora das Dores faz parte de uma das procissões mais lindas", complementa. Na sexta-feira (11), a imagem da santa sai para a procissão no Dia da Nossa Senhora das Dores. Dois dias depois, no domingo (13), estará presente na procissão de encontro com o Senhor dos Passos. Além disso, na sexta-feira Santa (18), participa da procissão do Enterro do Senhor.
Denúncias
Diante das queixas recebidas pelo Iphan, foi instaurado um processo formal para apuração do caso. Um ofício foi encaminhado na sexta-feira (4) ao bispo diocesano de Anápolis, Dom João Wilk, para prestar "esclarecimento quanto à pintura da imagem sem autorização do Iphan e sem acompanhamento de técnico restaurador habilitado". O documento diz ainda que a conservadora-restauradora de bens culturais móveis e técnica da autarquia fez vistoria na Igreja Matriz em março e "não foi informada da necessidade de restauro da referida peça".
"A seriedade do ocorrido requer medidas céleres para contenção do agravamento do estado de preservação da referida imagem. A preocupação com a pintura sem acompanhamento técnico se reforça pela importância da imagem e por ser um bem importante para a comunidade Católica de Pirenópolis", destaca. Foi dado um prazo de 15 dias para manifestação da Diocese, além da apresentação de um cronograma com ações previstas para recuperação da imagem, "que garantam a reparação dos danos identificados."
Conforme o superintendente do Iphan em Goiás, Gilvane Felipe, após o prazo, será aberto um processo fiscalizatório, "com lavratura de auto de infração e demais medidas legais cabíveis". Ele conta que estará em Brasília nesta segunda-feira (7) onde será requisitada a vinda de especialista para fazer "uma verificação completa a minuciosa". "Adulterar um bem tombado pelo Iphan é crime, sujeito a multa e outras penalidades", diz. A autarquia também vai apurar se houve alteração em outras imagens, como, conforme Séfora foi informada, de São Sebastião e Senhor Morto.
A reportagem esteve na Igreja Matriz neste domingo (6) e confirmou que as alterações estavam presentes na santa, disposta no altar. No local, um funcionário rechaçou as denúncias e alegou que nada foi feito com a imagem. Conforme ele, a escultura foi apenas limpa, já que, com as intervenções no espaço, teria acumulado poeira. Caracterizou ainda a situação como boato de um grupo pequeno.
Ainda neste domingo (6), a reportagem entrou em contato com o padre Augusto Gonçalves, pároco de Pirenópolis, por meio de mensagem de texto e ligação. Também foi deixado um número para contato na recepção do museu da igreja. Até o fechamento desta edição, contudo, não obteve retorno. Também não foi possível falar com a Diocese de Anápolis. As fontes relataram que, conforme informado pelo mesmo, o padre não sabia das alterações na imagem.
