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Lei goiana que prevê que mulher escute coração do feto antes de aborto legal é questionada no STF

Antônio Cruz/Agência Brasil

A Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) protocolou nesta quarta-feira (31) ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 7594) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a lei goiana que instituiu campanha estadual de conscientização contra o aborto e que prevê, entre outros pontos, que o Estado forneça ultrassonografia com batimentos cardíacos do feto à gestante.

A entidade alega que a lei viola a Constituição e os princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e pede a suspensão liminar da eficácia do texto integral. Diz ainda que o artigo que trata dos batimentos cardíacos é de "uma desumanidade teratológica vil e perversa". A ação teve distribuição para relatoria do ministro Edson Fachin.

A lei foi proposta pelo ex-deputado Fred Rodrigues (DC) e sancionada sem vetos pelo governador Ronaldo Caiado (UB) no dia 11 de janeiro. O jornal O Popular mostrou que lideranças do movimento feminista repudiaram a norma e a Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB/GO) sugeriu ADI, apontando o artigo como "tortura". Nesta quarta, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), depois de provocada pela Defensoria Pública, disse que expediu orientação aos órgãos estaduais sobre a "adequada interpretação" do texto legal.

"A lei impugnada é formalmente inconstitucional, por legislar sobre tema de competência da União, contrariando as leis federais de regência do direito ao aborto legal e seguro, ao pretender constranger as mulheres que desejam realizá-lo. Ademais, entende-se que a lei impugnada é materialmente inconstitucional, por ter a intenção ou efeito de constranger e discriminar as mulheres que desejam realizar o aborto legal e seguro, já que pretende campanhas contra o aborto apenas no contexto do aborto legal, donde cria ônus indevido ao exercício regular desse direito, violando os direitos fundamentais à não discriminação por sexo, gênero e identidade de gênero, à saúde, de proporcionalidade e de proibição de retrocesso social", diz a peça, de 93 páginas, assinada pelos advogados Manoela Gonçalves Silva, Sônia Maria Carneiro Caetano Fernandes, Amanda Souto Baliza - as três de Goiás -, Alice Bianchini, Paulo R. Iotti Vecchiatti e Carolina Valença Ferraz.

A entidade também diz que a lei visa "criar restrições abusivas ao exercício regular do direito ao aborto legal e seguro, e fomenta pânico moral na sociedade contra as mulheres que cometem o aborto", inclusive legal.

A peça também cita a onda de projetos semelhantes em outros Estados e municípios, fomentados por representantes da direita mais radical, conforme mostrou o jornal. "Leis como essa são propostas em todo o país em uma tentativa organizada e deliberada de ascensão de uma espécie de totalitarismo teocrático", diz.

A interrupção da gravidez no Brasil é permitida legalmente em apenas três casos: gestação que resulta de violência sexual, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Nos demais, é tido no Código Penal como crime doloso contra a vida. O autor da proposta, que teve o mandato cassado em dezembro, justifica no projeto que a campanha tem como objetivo “evitar que ocorram casos de aborto ilícitos e que prejudiquem tanto a saúde pública quantos os direitos à vida”.

A lei prevê também palestras "sobre a problemática do aborto, com amparo das Secretarias da Saúde e da Educação, com o intuito de conscientizar crianças e adolescentes sobre os riscos provocados pelo abortamento" e informações sobre métodos contraceptivos, e a promoção de “palestras, seminários, mobilização e outras atividades que permitam estimular a sensibilização da população acerca dos direitos do nascituro, do direito à vida e das imputações penais no caso de aborto ilegal”.

Em outro ponto, a lei estabelece "estimular a iniciativa privada e organizações não governamentais (ONGs) na promoção de meios para acolher, orientar e prestar assistência às mulheres grávidas que manifestem interesse na interrupção da gestação, priorizando sempre a manutenção da vida do nascituro". Na parte que diz que o "Estado forneça, assim que possível, o exame de ultrassom contendo os batimentos cardíacos do nascituro para a mãe", não há detalhamento de como será feito.

O jornal não conseguiu contato com Fred Rodrigues. Nas redes sociais, ele reagiu às críticas à lei, acusando "fake news" e afirmando que o texto não obriga que as mães ouçam os batimentos cardíacos do feto.

A PGE afirmou que os agentes públicos estaduais não poderão impor à gestante quaisquer medidas relacionadas à visualização do feto (antes ou depois do procedimento de interrupção), oitiva de batimentos cardíacos e medidas assemelhadas, sob pena de responsabilização pessoal e que expediu orientação às Secretarias de Saúde e de Educação sobre a "adequada interpretação e aplicação da lei". O despacho, assinado pelo procurador-geral do Estado, Rafael Arruda, foi publicado na segunda-feira (29). A PGE afirmou ainda ter prestado esclarecimentos à Defensoria Pública a respeito.

"O dispositivo oferece diretrizes gerais para ações informativas acerca do tema, sem interferência em procedimentos médicos atualmente realizados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ou da rede privada, que seguem atos regulamentares editados pelos órgãos e entes dotados de competência regulatória, como Ministério da Saúde e Conselho Federal de Medicina. O inciso VI do art. 3º, que menciona o fornecimento exame de ultrassom à gestante, não estabelece a obrigatoriedade de que a gestante seja submetida, nos casos de aborto legal, a qualquer exigência adicional como condição para a realização do procedimento médico", diz a PGE.

Tentativas
Antes do protocolo da ABMCJ, houve mobilização de mulheres da carreira jurídica no Estado para tentar levar o caso à Justiça. No Ministério Público de Goiás (MP-GO), a procuradora de Justiça Ivana Farina, presidente da Comissão de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade, fez representação para a Procuradoria Geral de Justiça, com instauração de notícia de fato.

A Defensoria Pública do Estado informou na semana passada que estava estudando a possibilidade de ação. Na OAB-GO, a previsão é que o conselho seccional apreciasse o pedido da Comissão da Mulher apenas em fevereiro. Um grupo de professoras de Direito da Universidade Federal de Goiás também tentou mobilizar entidades e partidos para acionar a Justiça, mas não conseguiu ir adiante.

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